12/12/2017

Aleksandr Dugin - O que é Civilização?

por Aleksandr Dugin



A Demanda por uma Definição Mais Exata

Isso emerge do sentido fundamental de nossa época, transitando da modernidade à pós-modernidade, que essencialmente afeta campos semânticos e formas linguísticas. E, na medida em que nos encontramos na fase de uma transição ainda não terminada, uma confusão inconcebível reina em nossas noções: alguém usa termos costumários em seu antigo sentido; alguém, sentindo a necessidade de substituição semântica, olha para o futuro (que ainda não chegou); alguém fantasia (talvez se aproximando do futuro ou simplemente caindo em alucinações individualistas e irrelevantes); alguém se confunde completamente.

Independentemente de qual seja o caso, para o uso correto de termos, especialmente termos fundamentais, aos quais, indubitavelmente, o conceito de civilização pertence, é necessário hoje realizar, ainda que de forma elementar, uma desconstrução, traçando o significado ao contexto histórico, e rastreando as mudanças semânticas básicas.


"Civilização" como uma Fase no Desenvolvimento das Sociedades

O termo "civilização" recebeu ampla circulação na época do rápido desenvolvimento da teoria do progresso. Essa teoria procedeu de dois axiomas fundamentais e paradigmáticos da modernidade: o caráter progressivo e unidirecional do desenvolvimento humano (de menos para mais) e a universalidade do homem enquanto fenômeno. Neste contexto, "civilização", para H. L. Morgan define a fase na qual a "humanidade" (no século XIX, todos acriticamente acreditavam na existência evidente de um conceito como "humanidade") se inicia após a fase de "barbarismo", enquanto esta, por sua vez, substitui consigo própria a fase de "selvageria".

Marxistas adotaram essa interpretação da civilização facilmente, tendo-a incluído na teoria da mudança das formações econômicas. Segundo Morgan, Taylor e Engels, a "selvageria" caracteriza tribos engajadas em coleta e tipos primitivos de caça. O "barbarismo" tem relação com sociedades iletradas, ocupadas com os tipos mais simples de economia rural e criação de gado, sem uma clara divisão do trabalho ou desenvolvimento de instituições sociopolíticas. "Civilização" significa por si só a fase do aparecimento das letras, das instituições sociopolíticas, das cidades, das artes, das melhorias tecnológicas, da divisão da sociedade em classes, do aparecimento de sistemas teológicos e religiosos desenvolvidos. "Civilizações" eram consideradas como sendo historicamente estáveis e capazes de serem preservadas; se desenvolvendo, mas preservando características centrais permanentes ao longo dos milênios (mesopotâmica, egípcia, indiana, chinesa, romana).

"Civilização" e "Império"

Porém, junto com o significado puramente histórico no conceito de "civilização", um sentido territorial também é incluído, ainda que menos explicitamente. A "civilização" oferecia uma área suficientemente vasta de difusão; isto é, além de uma dimensão temporal considerável, uma difusão espacial também era presumida para caracterizar uma civilização. Nesse sentido territorial, as fronteiras do termo "civilização" em parte coincidiam com o significado da palavra "império", "potência mundial". "Império" neste sentido civilizacional apontava não para a peculiaridade de um arranjo político e administrativo, mas para o fato de uma difusão ativa e intensa de influência, procedendo dos centros de civilização para os territórios circundantes, supostamente povoados por "bárbaros" ou "selvagens". Em outras palavras, no próprio conceito de "civilização" já se pode espiar o caráter de expansão e a exportação de influência, característica dos "impérios" (antigos e modernos).

Civilização e o Tipo Universal

A "civilização" operou um novo tipo universal, qualitativamente diferente dos modelos das sociedades "bárbaras" e "selvagens". Este tipo foi geralmente construído sobre a "globalização" daquele centro etnotribal e/ou religioso que se erguia na fonte de uma dada civilização. Mas no curso dessa "globalização", isto é, através do equacionamento de um padrão religioso, étnico e sociopolítico concreto com o "padrão universal", o processo mais importante da transcendência do próprio ethnos ocorreu, transferindo sua tradição natural e orgânica, muitas vezes inconscientemente transmitida, para o nível de um sistema racional, consciente e feito por homens. Os cidadãos de Roma mesmo nas primeiras fases do Império já diferiam essencialmente dos residentes típicos do Lácio, enquanto uma variedade de muçulmanos, orando em árabe, foram muito mais longe que as tribos beduínas da Arábia e seus descendentes étnicos diretos.

Dessa maneira, à época da passagem à "civilização", a antropologia social mudou qualitativamente: o homem, se voltando para a "civilização", teve uma identidade coletiva impressa sobre um corpo fixo de cultura espiritual, que ele foi obrigado a assimilar em alguma medida.

A "civilização" assumiu uma força racional e volitiva do ldo do homem; aquilo que no século XVII, após Descartes, filósofos começaram a chamar de "o sujeito". Mas a necessidade de tal força e a presença de um modelo, abstraído e fixado na cultura, equalizou, em alguma medida, tanto os representantes do ethnos nuclear (da religião), jazendo na base da "civilização", e aqueles que acabaram na zona de influência de outros contextos étnicos. Adotar as fundações da civilização era qualitativamente mais fácil do que ser aceito em uma tribo, na medida em que não havia para isso qualquer demanda de absorver organicamente os reservatórios imensos de arquétipos inconscientes, mas realizar uma série de operações lógicas e racionais.

Civilização e Cultura

Em alguns contextos (dependendo do país ou do autor) no século XIX o conceito de "civilização" foi identificado com o conceito de "cultura". Em outros casos, relações hierárquicas foram estabelecidas entre eles - usualmente, o cultural foi pensado como o preenchimento espiritual da civilização, enquanto a "civilização" propriamente significada a estrutura formal da sociedade, respondendo aos principais pontos da definição. 

Oswald Spengler, em seu famoso livro "O Declínio do Ocidente", até contrastou "civilização" e "cultura", considerando o segundo como uma expressão do espírito orgânico e vital do homem, mas o primeiro como um produto do resfriamento desse espírito dentro de limites puramente mecânicos e técnicos. Segundo Spengler, a civilização é um produto da morte cultural. Porém, tal perspicaz observação, interpretando corretamente algumas qualidades da civilização ocidental contemporânea, não recebeu reconhecimento geral; e usualmente hoje os termos "civilização" e "cultura" são usados como sinônimos, ainda que cada pesquisador concreto tenha sua própria opinião sobre este ponto.

Pós-Modernismo e a Compreensão Sincronística de Civilização

Mesmo a análise mais superficial do significado do termo "civilização" mostra que nele, nós já estamos lidando com um conceito saturado com o espírito do Iluminismo, do progressismo e do historicismo, característico da época da modernidade em sua fase acrítica; isto é, até a reconsideração fundamental do século XX. Fé no desenvolvimento progressivo da história, na universalidade do caminho humano segundo uma lógica comum de desenvolvimento da selvageria à civilização, foi o traço distintivo do século XIX. Mas já com Nietzsche e Freud, os chamados "filósofos da suspeita", este axioma otimista começou a ser posto em dúvida. E por um período do século XX, Heidegger, os existencialistas, os tradicionalistas, os estruturalistas, e finalmente os pós-modernistas o despedaçaram.

Na pós-modernidade, a crítica do otimismo histórico, do universalismo e do historicismo adquiriu um caráter sistemático e estabeleceu as premissas doutrinárias para uma revisão total do aparato conceitual da filosofia europeia ocidental. Essa própria revisão ainda não foi posta em prática até o fim, mas o que foi feito (por Levi-Strauss, Barthes, Ricoeur, Foucault, Deleuze, Derrida, etc.) já é bastante para nos convencermos da impossibilidade de usar o dicionário da modernidade sem uma desconstrução profunda e rigorosa. P. Ricoeur, resumindo as teses dos "filósofos da suspeita", pinta a seguinte imagem. O homem e a sociedade do homem consistem de componentes racional-conscientes ("kerigma", segundo Bultmann; "superestrutura", segundo Marx; "ego", para Freud) e inconscientes (adequadamente, "estruturas", no entendimento estruturalista; "bases"; "a vontade de poder", de Nietzsche; "o inconsciente"). E ainda que externamente pareça que o caminho do homem leva diretamente da catividade do inconsciente ao reinado da razão, e que isso representa de forma exata o progresso e o conteúdo da história, na verdade sob escrutínio mais próximo se torn claro que o inconsciente ("mito") se prova muito mais forte e, como antes, predetermina consideravelmente as operações do intelecto. Ademais, a própria razão e a atividade lógica e consciente é quase sempre nada mais que uma imensa obra de repressão dos impulsos inconscientes - em outras palavras, uma expressão de complexos, estratégias de deslocamento, substituição de projeção, e por aí vai. Em Marx, o inconsciente é representado pelas "forças de produção" e pelas "relações industriais".

Consequentemente, "civilização" não é mera remoção da "selvageria" e do "barbarismo", superando-os inteiramente, mas é ela própria construída precisamente sobre bases "selvagens" e "bárbaras", que transferem para a esfera do inconsciente, mas não só não há lugar algum para o qual escapar disso, mas, ao contrário, eles adquirem poder ilimitado sobre o homem, em grande medida precisamente porque se pensa neles como "superados" e até "inexistentes". Mas isso é explicado pela notável diferença entre as práticas histórias de povos e sociedades, repletos de guerra, opressão, crueldade, explosões selvagens de teror, abundando em desordens psicológicas debilitantes, e as pretensões da razão a uma existência harmônica, pacífica e iluminada sob a sombra do progresso e do desenvolvimento. Nesse sentido, a era moderna não só não é uma exceção, mas sim o pico da intensificação dessa discrepância entre as pretensões da razão e a realidade sanguinária das guerras mundiais, das limpezas étnicas, e dos genocídios historicamente sem precedentes de raças e povos inteiros. E para a satisfação da "selvageria" são empregados os meios técnicos mais perfeitos inventados pela "civilização", até o ponto das armas de destruição em massa.

Assim, a tradição crítica, o estruturalismo e a filosofia da pós-modernidade nos forçam a avançar para longe da interpretação majoritariamente diacrônica (faseada) da "civilização", que foi a norma do século XIX e por inércia continua sendo amplamente utilizada, e na direção da sincrônica. A interpretação sincrônica assume que a civilização não vem no lugar da "selvageria" ou do "barbarismo", nem após, mas junto e continua a coexistir com eles. Pode-se imaginar "civilização" como o numerador, e "selvageria"-"barbarismo" como o denominador de uma fração condicional. A "civilização" afeta a consciência, mas o inconsciente, pela incessante "obra dos sonhos" (S. Freud), constantemente reinterpreta tudo a seu favor. A "selvageria" é aquilo que explica a "civilização", e é a chave para ela. Acontece que o homem [ou seja, a humanidade] se apressou para decretar sobre a "civilização" como algo que já aconteceu, quando na verdade ela não é mais que um plano incompleto, constantemente sofrendo com perturbações sob o massacre das energias maliciosas do inconsciente (porém, podemos compreendê-lo: como "vontade de poder" nietzscheana, ou psicanaliticamente).

A Desconstrução da "Civilização"

Como, na prática, se pode aplicar a abordagem estruturalista para a desconstrução do conceito de "civilização"? Seguindo com a lógica geral dessa operação, deve-se submeter à dúvida a irreversibilidade e novidade daquilo que constitui as características básicas da "civilização", em contraste com a "selvageria" e o "barbarismo".

A principal característica da "civilização" é usualmente pensada como sendo universalidade inclusiva; isto é, a abertura teórica do código civilizacional para aqueles que gostariam de se unir vindos de fora. Universalidade inclusive é, à primeira vista, antítese completa da particularidade exclusiva, característica das sociedades tribais e ancestrais do período "pré-civilizacional". Mas as pretensões históricas da civilização à universalidade - ecumenicalismo, e, correspondentemente, singularidade - constantemente empurram contra o fato de que, além das nações "bárbaras", fora das fronteiras de tal "civilização", existiam outras civilizações, com suas variações únicas e distintas do "universalismo". Neste caso, uma contradição lógica foi posta diante da "civilização": ou se deve admitir que a pretensão à universalidade se mostra infundada, ou se deve incluir a outra civilização na categoria dos bárbaros.

Reconhecendo-se a ausência de fundamentos, várias decisões também podem se seguir: ou tentar encontrar um modelo sincrético de unificação das duas civilizações (pelo menos na teoria) em um sistema geral, ou admitir a corretude da outra civilização. Em regra, confrontando tal problema, a "civilização" age com base em um princípio exclusivo (não inclusivo), considera a outra civilização defeituosa; isto é, "bárbara", "herética", "particular". Em outras palavras, estamos lidando com a transferência do usual etnocentrismo tribual a um nível mais alto de generalização. A inclusividade e o universalismo, na prática, se transformam na exclusividade e no particularismo "selvagens" que conhecemos.

Isso é fácil de reconhecer nos seguintes exemplos: os gregos, se considerando uma "civilização" classificavam todos os outros entre os "bárbaros". A origem da palavra "bárbaro" é um pejorativo onomatopeico, significando aquele cuja fala não faz sentido e não passa de um amontoado de sons animais. Muitas tribos possuem uma relação similar com membros de tribos diferentes: não entendendo sua linguagem, eles acreditam que os outros não tem qualquer linguagem; consequentemente, eles não os consideram pessoas. Daí, incidentemente, o termo tribal eslávico "nemtsie" [alemães], isto é "nemie" [burro, mudo], para aqueles que não conhece o que qualquer um que se diga um homem deve conhecer: a língua russa.

Entre os antigos persas, representando precisamente uma civilização com pretensões à religião universal mazdeana, isso era expresso de forma ainda mais clara: a divisão entre Iran (povo) e Turan (demônios) foi traçada ao nível da religião, cultos, ritos e ética. A questão chegou ao ponto da absolutização das relações endógenas e da normalização do incesto, para que o sol dos iranianos (Ahura Mazda) não fosse profanado pelas impurezas dos filhos de Angra-Mainyu.

O judaísmo enquanto religião mundial, tendo pretensões ao universalismo e tendo assentado as bases teológicas do monoteísmo - tanto para o Cristianismo como para o Islã, que foram desenvolvidas por algumas civilizações simultaneamente - está até hoje quase etnicamente limitado às tribos sanguíneas pela Halakhah.

O sistema tribal se baseia em iniciação, no curso da qual o neófito é informado das bases da mitologia tribal. No nível civilizacional, essa mesma função é desempenhada por instituições religiosas; e em épocas comparativamente posteriores, pelo sistema de educação comum, tornado deliberadamente ideológico. Neófitos aprendem os mitos da modernidade em outras condições e sob outro verniz, mas seu valor funcional permanece constante, enquanto sua base (se levarmos em consideração a análise freudiana das ações substitutivas-repressivas da razão e do "ego") não se distanciou muito da lenda e da tradição.

Em uma palavra, mesmo uma desconstrução apressada da "civilização" mostra que as reinvidicações de superação de fases anteriores são ilusões, enquanto na prática coletivos grandes e "desenvolvidos" de pessoas, unidos em uma "civilização", em essência simplesmente repetem em um nível diferente os arquétipos do comportamento e os sistemas morais dos "selvagens". Daí, guerras sem fim e cada vez mais sangrentas, duplicidade na política internacional, arroubos de paixão na vida privada, e os códigos éticos e normativos constantemente quebrados de sociedades moderadas e racionais. Desenvolvendo o pensamento de Rousseau do "nobre selvagem" (Rousseau, aliás, duramtne criticou a civilização enquanto fenômeno e pensava exatamente nela como fonte de todo mal), pode-se dizer que o homem "civilizado" não é outro que o "selvagem maligno", um "bárbaro" pervertido e defeituoso.

O Entendimento Sincrônico e Plural da "Civilização" Prevalece Hoje

Com essas observações preliminares, podemos finalmente nos voltarmos para o que incluímos hoje no conceito de "civilização" quando desenvolvemos as teses de Huntington sobre "o choque de civilizações" ou levantamos objeções contra ela com o ex-presidente do Irã Khatami, insistindo em um "diálogo de civilizações".

O próprio fato de que dificilmente há qualquer consenso no uso do termo "civilização" evidentemente mostra que a interpretação faseada (puramente histórica ou progressiva) daquele conceito, prevalecendo na época moderna e geralmente aceita no século XIX e na primeira metade do século XX, claramente perdeu sua relevância hoje.

Só os pesquisadores mais datados, que estão presos na modernidade acrítica de Kant ou Bentham, podem contrastar "civilização" e "barbarismo" hoje. Ainda que seja confortável utilizar o termo "civilização" instrumentalmente em análise histórica na descrição de tipos antigos de sociedade, ela ainda assim claramente perdeu a carga ideológica na comparação com o barbarismo e a selvageria. O universalismo, o desenvolvimento gradual, a unidade antropológica da história humana - a nível filosófico, tudo isso há muito já foi questionado. Por seus estudos em antropologia estrutural, com base nos mais ricos materiais etnográficos e mitológicos da vida de tribos norte-americanas e sulamericanas, Levi-Strauss demonstrou convincentemente que os sistemas conceituais e mitológicos daquelas mesmas sociedades "primitivas", por sua complexidade, riqueza de nuances, conexões e elaborações funcionais de diferenciações, não são de forma alguma inferiores às dos países mais civilizados.

No discurso político, ainda se fala nos "privilégios da civilização", mas mesmo isso já parece anacrônico. Nós confrontamos esta pontada de ignorância acrítica quando reformistas liberais tentaram apresentar a história da Rússia como uma corrente contínua de barbarismo descontrolado em face de uma civilização ocidental "florescente", "resplandescente", "estabelecida". Porém, mesmo isso não só foi uma extrapolação das pretensões propagandísticas e arrogantes do próprio Ocidente e um resultado da rede de indução de influências, mas também uma forma de "culto à carga" russo: o primeiro "McDonald's", os primeiros bancos privados e os clipes de bandas de rock na televisão soviética eram percebidos como "objetos sacros".

Com a exceção dessas estampas propagandísticas ou do atraso desesperançoso de filósofos acríticos, onde está ausente até uma familiaridade distante com a filosofia contemporânea, ainda o conceito de "civilização" é interpretado sem qualquer carga moral, mais como um termo técnico, e não implica algo oposto a "barbarismo" e "selvageria", mas a outra "civilização". No famoso e supramencionado artigo de Huntington, não há uma única palavra sobre "barbarismo"; ele fala exclusivamente em fronteiras, estruturas, peculiaridades, fricções e diferenças de várias civilizações, opostas umas às outras. E esta característica é uma característica não só daqueles de suas posições ou linhas argumentativas derivadas de Toynbee, que Huntington claramente segue. O uso desse termo no contexto contemporâneo já sugere um claro pluralismo, comparativismo, e, se desejarmos, sincronismo. Aqui, a crítica filosófica e a reconsideração da modernidade, implementada de mil maneiras diferentes no curso do século XX, são imediatamente impactantes.

Assim, se descartarmos as recorrências do liberalismo acrítico e a ingenuidade estreita da propaganda pró-americana, veremos que hoje o termo "civilização" na análise politológica ativa e operacional é usada principalmente sincronicamente e funcionalmente, para designar zonas culturais e geográficas amplas e estáveis, unidas por arranjos psicológicos, estilísticos, morais e espirituais comuns e pela experiênciah istórica.

Civilização no contexto do século XXI significa precisamente isto: uma zona de influência estável e enraizada de um estilo sociocultural definido, usualmente (ainda que não necessariamente) coincidindo com as fronteiras de difusão de religiões mundiais. E a formação política de segimentos separados ingressando em uma civilização pode ser bem diferente: civilizações, em regra, são mais amplas do que um único governo, e podem consistir de alguns ou mesmo muitos países; ademais, as fronteiras de algumas civilizações cruzam países, os dividindo em partes.

Se na antiguidade as "civilizações" usualmente coincidiam com impérios e eram de uma maneira ou de outra politicamente unidas, então hoje suas fronteiras correspondem a linhas invisíveis, irrelevantemente superpostas sobre as fronteiras administrativas de governos. Alguns desses governos jamais foram parte de um único império (por exemplo, o Islã se difundou quase por todo lado nas conquistas dos árabes que construíram o Califado). Outros não partilhavam uma estatalidade comum, mas estavam unidos entre si de maneiras diferentes: religiosamente, culturalmente ou racialmente. 

A Crise dos Modelos Clássicos de Análise Histórica (Clássica, Econômica, Liberal, Racial)

Assim, estabelecemos que no uso do termo "civilização" no século XX e no esquema das críticas da modernidade ocorreram uma mudança qualitativa na direção da sincronicidade e da pluralidade. Mas pode-se dar outro passo e tentar compreender o motivo pelo qual o uso dessa palavra se tornou tão tópico precisamente em nossa época? De fato, o conceito anterior de civilização não era objeto de problematização deliberada, sendo comum apenas em círculos humanitários e acadêmicos pensar em tal categoria. Outras abordagens - econômica, nacional, racial, classista - dominavam no discurso político e, proximamente relacionado, no politológico. Hoje nós vemos que pensar apenas economicamente, falar apenas em interesses nacionais e em governo nacional, e por aí vai, colocar análise classista ou a abordagem racial no topo da própria análise é cada vez menos aceitável. E pelo contrário, é raro que alguma afirmação ou discurso de um ator político não tenha alguma menção da palavra "civilização", para não mencionar textos políticos e analíticos, onde este termo é bem prevalecente. 

De fato, com Huntington nós vemos a tentativa de fazer da "civilização" o momento central da análise política, histórica e estratégica. Nós estamos claramente a caminho de pensar com "civilizações".

Aqui devemos olhar mais atentamente para aquilo que precisamente nas principais versões do discurso politológico foi substituído pela "civilização". O discurso racial deixou de ser aceitável após a história trágica do fascismo europeu. A análise classista se tornou irrelevante após a queda do socialismo e a desintegração da URSS. E, por um tempo, pareceu que o único paradigma politológico seria o liberalismo. Enquanto isso, cresceu a impressão de que as fronteiras nacionais de governos homogêneos essencialmente liberal-democráticos, não mais confrontando qualquer tipo de sistema alternativo reivindicando escopo planetário (após a queda do marxismo), logo seriam abolidas, uma liderança mundial e um governo mundial estabelecidos com um a economia de mercado homogênea, democracia parlamentar (parlamento mundial), um sistema de valores liberais e uma infraestrutura tecnológico-informacional comum. Em 1990, Francis Fukuyama se apresentou como o arauto desse "admirável mundo novo" em seu livro (e primeiramente em um artigo) chamado "O Fim da História". Fukuyama apontou para o desenvolvimento da interpretação faseada do conceito de "civilização": o fim da história, em sua versão, significava a vitória final da "civilização" sobre o "barbarismo" em todas as suas formas, disfarces e variações.

Huntington discordou de Fukuyama, propondo como seu principal argumento o fato de que o fim da oposição das ideologias claramente definidas da modernidade (marxismo e liberalismo) de forma alguma significava a integração automática da humanidade em uma utopia liberal unificada, na medida em que sob as construções formais de governos nacionais e campos ideológicos estavam profundas placas tectônicas; na verdade, continentes de inconscientes coletivos, os quais, como se tornou cada vez mais claro, de forma alguma foram sobrepujados pela modernização, pela colonização, pela ideologização e pelo iluminismo, e como antes predeterminavam os aspectos mais importantes da vida - incluindo política, economia e geopolítica - em um ou outro segimento da sociedade humana segundo seu pertencimento a uma civilização.

Em outras palavras, Huntington propôs introduzir o conceito "civilização" como conceito ideológico fundamental, reivindicado para a substituição não só da análise classista, mas também da utopia liberal, que assumiu avidamente e acriticamente demais a demagogia propagandista da 'Guerra Fria", e dessa forma se tornou, por sua vez, sua vítima. O capitalismo, o mercado, o liberalismo e a democracia pareciam universais e comumente humanas só externamente. Cada civilização reinterpreta sua substância segundo seus próprios modelos inconscientes, onde religião, cultura, linguagem e psicologia desempenham um papel imenso e usualmente decisivo.

Em tal contexto, a civilização adquire uma importância central na análise politológica, adquirindo primazia e substituindo os clichês da "Vulgata" liberal.

O desdobrar de eventos na década de 90 mostra que Huntington provou nesse argumento estar mais próximo da verdade, e o próprio Fukuyama se viu obrigado a reconsiderar parcialmente suas opiniões, tendo admitido que ele obviamente falou cedo demais. Mas essa própria revisão de Fukuyama da tese do "fim da história" demanda uma reconsideração mais judiciosa.

O Passo Atrás dos Utopistas Liberais: Construção de Estado

O problema é que Fukuyama, analisando a discrepância entre suas previsões sobre "o fim da história" pelo prisma da vitória global do liberalismo ainda tentou ficar no esquema daquela lógica, a mesma da qual ele partiu inicialmente. Consequentemente, ele precisava implementar um único reality-check e se virar a partir daí, de modo a admitir a corretude de seu adversário Huntington, que, em sua previsão, se provou mais perto da verdade. Então Fukuyama fez o seguinte movimento conceitual: ele propôs adiar o fim da história a uma data indeterminada, e enquanto isso se engajar no fortalecimento daquelas estruturas sociopolíticas que eram o núcleo da ideologia liberal em suas fases anteriores. Fukuyama propôs uma nova tese: "Construção de Estado". Como fase intermediária para a transição rumo ao governo global e à liderança mundial, ele recomendou fortalecer os governos nacionais com uma economia liberal e um sistema democrático de governo, de modo a trabalhar de forma mais fundamental e profunda o solo para a vitória final do liberalismo mundial e da globalização. Essa não é uma rejeição da perspectiva; este é seu adiamento para o futuro indeterminado com uma proposição concreta para a fase intermediária. 

Fukuyama não diz quase nada sobre o conceito de "civilização", mas claramente leva as teses de Huntington em consideração, respondendo de forma indireta a ele: o desenvolvimento contínuo de governos nacionais, que se provaram contraídos na época da colonização, na época dos movimentos de liberação nacional, e na época da oposição ideológica dos dois campos, deve agora prosseguir em seu curso devido. É isso que levará gradualmente diferentes sociedades a adotarem o mercado, a democracia e os direitos humanos, extirpando os resquícios do inconsciente e preparando um solo mais garantido e à prova de falhas (do que agora) para a globalização.