18/07/2017

Alain de Benoist - Terra do Leite e do Mel

por Alain de Benoist



Ninguém gosta de ser objeto de crítica, e os americanos não são exceção. E quando alguém é o alvo de críticas, não se deve esperar que ele sempre concorde com elas. É importante, porém, compreender essa crítica, levá-la a sério em seus próprios termos, e não simplesmente descartá-la como se fosse inspirada por malícia, inveja ou ignorância.

A crítica que a Nova Direita francesa lançou contra a América a fez receber um rótulo injustificado de ser inspirada por algum tipo de chauvinismo francês oculto ou por algum tipo de fobia "anti-americana". E vezes demais a crítica da Nova Direita não foi entendida bem o bastante. Alguns americanos (eles próprios críticos do que seu país se tornou agora e de como ele evoluiu) assumem que a crítica é dirigida primariamente à América de hoje. Isso não é verdade. A crítica que a ND dirige contra a América tem como alvo, na verdade, a própria base do que chamamos de "ideologia americana", uma ideologia que tem suas origens nos Pais Fundadores. Ou para falar de outro jeito, essa não é uma crítica da América multirracial (ou "multicultural") dos tempos modernos e pós-modernos, mas essencialmente uma crítica dirigida contra a América criada por brancos e cristãos anglo-saxões.

A Europa jamais declarou guerra contra os EUA. É evidente, porém, que desde seu início, os Estados Unidos da América tem tido contas a acertar com a Europa. A Europa nasceu de um desejo de ruptura com a Europa. O que as comunidades imigrantes no Novo Mundo desejavam em primeiro lugar era se livrar das regras e princípios políticos que dominavam na Europa. A nação americana nasceu de uma forma contratual durante a era da modernidade, evocando bastante a "cena primal" como imaginada por Sigmund Freud: os filhos se unem para matar seu pai e, depois, eles rascunham um contrato sancionando a relação entre iguais.

Evidentemente, o pai nesse esquema era a Europa. Foi necessário romper com o passado para criar uma nova humanidade. Assim, em O Federalista nós lemos:

"Se medidas importantes não tivessem sido tomadas pelos líderes da Revolução para as quais não era possível descobrir precedentes; nenhum governo estabelecido do qual um modelo exato não fosse apresentado, o povo dos Estados Unidos poderia, neste momento, ser contato entre as vítimas melancólicas de conselhos equivocados, estaria na melhor das hipóteses estar labutando sob o peso de algumas daquelas formas que esmagaram as liberdades do resto da humanidade. Felizmente, para a América e nós confiamos para toda a raça humana, eles buscaram um caminho novo e mais nobre. Eles realizaram uma revolução que não tem paralelo nos anais da sociedade humana. Eles criaram os tecidos de governos que não tem modelo sobre a face do mundo". (1)


Similarmente, foi contra a Europa que em dezembro de 1823 James Monroe afirmou a posição central de sua famosa "Doutrina", isto é, que nenhuma intervenção europeia deveria ser tolerada em qualquer ponto que seja do continente americnano. "Temos ouvido por tempo demais às musas cortesãs da Europa", exclamou por sua vez o poeta e filósofo Ralph Waldo Emerson no século XIX. "Em muitos sentidos" como Dominique Moisi e Jacques Rupnik afirmam, "América é a anti-Europa. Ela nasceu de um desejo de criar uma 'nova Jerusalém' na terra para superar os limites e erros da história europeia".



Dado que a cidadania americana está fundada em um contrato entre imigrantes de diversas origens, segue-se que todas idiossincrasias culturais devem ser relegadas à esfera privada, o que significa que elas devem ser temporariamente mantidas fora da noção de cidadania. Essa demanda se encaixa perfeitamente com a filosofia individualista dos Pais Fundadores. Foi na América, pela primeira vez, que uma sociedade construída composta exclusivamente de indivíduos e não de grupos, tal como o próprio capitalismo pressupunha um tipo de individualismo orientado em primeiro lugar para a possessão privada.


Às vezes a indiferença dos americanos pela história é explicada por uma duração relativamente curta da existência de seu país. Essa explicação não parece convincente. Afinal, dois séculos é um período de tempo longo. Na verdade, o problema não é tanto que os americanos "não tem história", mas que eles não querem ter uma. Eles não terem ter uma porque, para eles, o passado é reminiscente de suas raízes europeias, que eles outrora tentaram descartar. "Este é o único povo sem quaisquer raízes e genealogia", escreveu, afetuosamente, o autor liberal Guy Sorman. Thomas Jefferson expressou a mesma ideia ao dizer que cada geração forma uma "nação separada". "Os mortos", disse ele, "não possuem direitos". Daniel Boorstin, ex-diretor da Biblioteca do Congresso, escreveu que "a noção de americanos hifenados é anti-americana. Eu creio haver apenas americanos. Polaco-americanos, ítalo-americanos ou afro-americanos são uma ênfase infértil.... Os americanos preferem ser chamados por seus primeiros nomes e abandonam os nomes de sua herança. O mesmo se aplica a objetos, a tendência sendo na direção do insustentável e do descartável".

A mesma observação foi feita por Christopher Lasch, que escreveu que nos EUA "a remoção das raízes sempre foi vista como pré-requisito para liberdades ampliadas". Daí, a América pode ser descrita como uma civilização do espaço e não uma civilização do tempo. Seu mito fundador não é a origem, mas a fronteira, o que em 1893 Frederick Jackson Turner interpretou como a noção mais representativa do ideal americano, isto é, a aspiração à "conquista do espaço". "O que outras pessoas experimentam como história", observa Jean-Paul Dollé, "os americanos percebem como um sinal de subdesenvolvimento".

E os americanos não quiseram romper apenas com a Europa. Eles também quiseram criar uma nova sociedade que regenerasse a humanidade. Eles queriam criar uma nova "terra prometida" que se tornaria o modelo da República Universal. Esse tema de inspiração bíblica, baeado na ideia de uma América "escolhida", desde seus primórdios e por uma escolha supostamente divina, constituiu a fundação de uma "religião civil" e do "excepcionalismo" americano. Ele seguiu ressurgindo como leitmotif ao longo da história americana, desde os dias dos Peregrinos, como quando o teólogo da Baía de Massachusetts John Cotton sugeriu a adoção do hebraico como idioma oficial para as  ex-colônias britânicas. John Winthrop, o primeiro governador da Colônia da Baía de Massachusetts, que foi fundada em 1629, afirmou:

"Devemos sempre considerar que seremos como uma cidade sobre uma colina, os olhos de todos estão sobre nós. Hoje os olhos de todos estão verdadeiramente sobre nós, e nossos governos, em cada seção, em cada nível, estado nacional e local deve ser como uma cidade sobre uma colina". (2)

Declarações similares foram feitas por William Penn, o chefe da colônia quaker da futura Pensilvânia, apenas para ser ecoado pelos colonos da Virgínia. Tão cedo quanto 1668, William Stoughton exclamou: "Deus peneirou uma nação inteira para que ele pudesse enviar os melhores grãos para este ermo" (3). Para Daniel Webster, os Estados Unidos são uma "terra prometida":


"Se de fato ele designou pro Providência que a mais grandiosa exibição de caráter humano e acontecimentos humanos seria feita neste teatro do mundo ocidental". (4)


Thomas Jefferson define um único conjunto de direitos individuais e coletivos para todos os homens. Influenciado pela doutrina dos direitos naturais, esses direitos eram tidos com osendo universal e válidos em todos os tempos e lugares. Em 13 de novembro de 1813, John Adams exortou os americanos em prol de "nossa pura, virtuosa e pública república federativa que durará para sempre, governará o globo e introduzirá a perfeição do homem" (5). Mesmo em 1996, o senador "conservador" americano Jesse Helms exclamou, "Os Estados Unidos devem liderar o mundo com a tocha moral... e servir como um exemplo para todos os povos".

O objetivo não é apenas receber os pobres e refugiados, como proclamado na inscrição no pedestal da Estátua da Liberdade:


"'Mantenham antigas terras sua pompa histórica!', grita ela

Com lábios silenciosos 'Dai-me os seus fatigados, os seus pobres,
As suas massas encurraladas ansiosas por respirar liberdade
O miserável refugo das suas costas apinhadas
Mandai-me os sem abrigo, os arremessados pelas tempestades,
Pois eu ergo o meu farol junto ao portal dourado'" (6)


O objetivo também é permitir que os recém-chegados se vinguem contra o país de sua origem. E também continuar a proceder de uma maneira que eventualmente levaria todo o mundo a se impregnar com a ideia de que a sociedade americana é a sociedade perfeita e que os descendentes dos puritanos são os eleitos de Deus. Ademais, foi a teologia puritana do "Pacto" que inspirou a doutrina do Destino Manifesto, como apresentada por John L. O'Sullivan em 1839:


"Nosso nascimento nacional foi o comçeo de uma nova história de formação e progresso de um sistema político ainda não experimentado, que nos separa do passado e nos conecta apenas com o futuro; e no que concerne todo o desenvolvimento dos direitos naturais do homem, na vida nacional, política e moral, nós podemos confiantemente assumir que nosso país está destinado a ser a maior nação do futuro.... Quem, então, pode duvidar que nosso país esteja destinado a ser a maior nação do futuro?" (7)


Em outras palavras, se Deus escolheu favorecer os americanos, eles devem ter o direito a converter outros povos no que quer que eles achem melhor e mais prático.


Daí, por um lado estamos testemunhando isolacionismo; a América deve se separar do mundo exterior, que é visto como corrupto. Por outro lado, há uma necessidade por uma "cruzada", o mundo deve ser gradativamente penetrado pelos valores universais do sistema americano. Na economia, políticas de livre-comércio jamais proibiram o uso de protecionismo, quando quer que fosse necessário; similarmente, na política externa, o isolacionismo, associado ao espírito de "cruzada", podem marchar lado-a-lado. Estes são dois lados da mesma vocação messiânica e um exemplo típico de como o universalismo político é só uma máscara para o etnocentrismo, isto é, um modelo peculiar com ambições planetárias.

Essa certeza subjacente explica a estabilidade extraordinária do sistema americana. No curso de sua história, os EUA só conheceram um único modelo político importante, um modelo que permaneceu virtualmente imutável desde os dias dos Pais Fundadores. A Constituição, bastante inspirada por Locke, e falando de modo geral pela filosofia do Iluminismo, e peneirada por meio do puritanismo, se tornou um tipo de monumento sagrado que faz do americanismo uma religião genuína. Estejam eles à direita ou à esquerda, todos os americanos estão de acordo no fato de terem uma missão de espalhar "a palavra" para a humanidade. Mesmo os utopistas mais frenéticos não põem em questão a autoridade da Constituição ou a superioridade da iniciativa individual. O sistema pode ser razoavelmente melhorado ou reformado, mas ele deve permanecer fundamentalmente imutável, na medida em que ele se mistura com a própria existência do país. Enquanto na Europa ainda é possível fazer referência a alguns entre incontáveis modelos políticos que existiram no passado, o debate político na América se reduz a discussões sobre os méritos relativos de Hamilton, Jefferson, Washington, et al. Fascismo e comunismo nunca tiveram qualquer impacto real nos EUA, nem a ideia de contrarrevolução, nem o marxismo crítico, nem o sindicalismo revolucionário, nem o anarcossindicalismo, o situacionismo, etc. Nas universidades, os cursos de Ciência Política usualmente envolvem longas discussões sobre a obra dos Pais Fundadores, que são retratados como pessoas com um legado insuperável. Mesmo o eterno debate entre federalistas e anti-federalistas, entre hamiltonianos e jeffersonianos, é, na verdade, uma disputa familiar, que jamais questiona o consenso político subjacente.

A política doméstica americana é muitas vezes reduzida a uma competição entre os dois principais partidos, que aos olhos dos europeus dizem mais ou menos a mesma coisa. As competições eleitorais, com as suas convenções organizadas como espectáculos de circo, são inteiramente dependentes do dinheiro. A "democracia" na América equivale a oligarquia financeira. As eleições são efusões financeiras da classe bilionária. Para os americanos, é considerado natural que os políticos sejam ricos (na minha opinião, a sociedade deve ser extremamente cética de qualquer pessoa que seja rica e poderosa ao mesmo tempo) assim como é natural que os políticos exibam suas esposas e filhos em eventos públicos, enquanto multiplicam slogans religiosos em seus discursos. Na Europa continental, um Chefe de Estado dirigindo-se seus eleitores com um "Deus te abençoe" e convidando os parlamentares para um dia de oração e jejum seria visto por muitos como uma pessoa pronta para o hospício...

O outro lado dessa paralisia institucional é o formidável conformismo e a extraordinária monotonia de uma sociedade que, década após década, afirma, com a mesma convicção dócil, que a América é um "país livre", enquanto adere aos mesmos modos, cumprindo as mesmas convenções, repetindo os mesmos slogans e, claro, usando os mesmos uniformes (jeans e t-shirts com um logotipo de uma universidade jamais frequentada ou uma equipe de beisebol da qual não se é membro). Esta monotonia já foi descrita por Alexis de Tocqueville, que observou que a sequência de comoção e modas fugazes nunca augura nada novo na América. Aproximadamente ao mesmo tempo, a Condessa de Merlin também observou que a vida dos americanos é "um curso eterno de geometria".

A mesma certeza messiânica inspira a política externa americana, cujo princípio principal é que o que é bom para a América deve também ser bom para o resto do mundo, o que, por sua vez, deve permitir que a América espere de seus aliados contribuições financeiras e aplausos. Como um disfarce secularizado do ideal puritano, a política externa está baseada na ideia de queapenas a falta de informação ou o mal intrínseco de líderes estrangeiros explica a relutância de pessoas ao redor do mundo em abraçar o modo de vida americano. Como Jean Baudrillard escreveu, os Estados Unidos são uma sociedade "cuja ingenuidade pode ser descrita como insuportável e cuja ideia fixa é a de que a América é a completude perfeita de tudo com que os outros sonham". (8)


As "relações internacionais" não passam de uma difusão global do ideal americano a nível planetário. Como assumem que representam o modelo de perfeição, os americanos não se sentem obrigados a conhecer os outros. Resta para os outros adotar o jeito americano. "A troca é desigual", observa Thomas Molnar, "porque a América não tem nada a aprender, mas tudo a ensinar" (9). E, de fato, tudo o que acontece na América deve eventualmente acontecer em outro lugar do mundo. Em outras palavras, a política externa tem como objetivo a criação de uma humanidade unificada que não precise mais de nenhuma política externa. Nessas circunstâncias, não se deve surpreender que as derrotas enfrentadas pelos Estados Unidos na arena internacional sejam freqüentemente resultados da incapacidade dos EUA de compreender que outros povos pensam de forma diferente do que eles. Na verdade, para os americanos, o mundo externo ("o resto do mundo") simplesmente não existe, ou melhor, só existe na medida em que se torna americanizado - uma condição prévia necessária para tornar-se compreensível.


Muitos observadores notaram a importância da religião na sociedade americana. "Em Deus confiamos" está escrito em todas as notas bancárias, e desde 1956, tornou-se lema nacional. Nos EUA, quase todas as cerimônias oficiais são precedidas ou seguidas por uma oração. Já em 1923, o Reverendo B. Soames declarou em Washington, durante uma bênção solene do equipamento militar: "Se Jesus Cristo voltasse à Terra ele seria branco, americano e orgulhoso disso!". Tocqueville já havia notado:

"É a religião que pariu as sociedades anglo-americanas. Nunca se deve esquecer isso; nos EUA, a religião está, portanto, misturada com todos os hábitos nacionais e com todos os sentimentos aos quais um país nativo dá origem". (10)


A religião é normalmente redefinida em um sentido otimista, consistente com as demandas do materialismo prático e com as aspirações do povo que nunca deixou de crer nas virtudes da tecnologia e que espontaneamente assume, dado que o sentido do trágico é alheio a ele, que de alguma forma as coisas sempre se acertarão no fim. O conhecido professor americano Thomas L. Pangle, em seu estudo sobre Montesquieu e sua influência sobre os Pais Fundadores, sugere que a adoração do republicanismo liberal comercial e do espírito do comércio como o melhor regime "se opunha fundamentalmente, não apenas à insegurança, mas também à virtude cívica austera da antiguidade republicana e à autotranscendência religiosa ou sobrenatural". (11)



O ponto principal é a reconciliação da religião com o otimismo herdado do Iluminismo e arraigado na direção que aponta para o futuro e para a mística do progresso. De John Winthrop a George W. Bush e Barack Obama, os americanos jamais desistiram da crença no progresso, que usualmente os leva à conclusão de que desenvolvimentos materiais e tecnológicos também melhorarão a humanidade. Nesse nosso mundo, somente pelo acúmulo de bens materiais pode uma pessoa ser salva. Daí a ideia de "redenção" pela conversão ao modo de vida americano. O calvinismo já havia tentado resolver este problema da "predestinação" interpretando o sucesso material como sinal de escolha divina. A glorificação da performance individual, o espírito do capitalismo, as virtudes pacificadoras do comércio, tudo isso nutre esperança de que o acúmulo de riqueza eventualmente aniuilará todo mal. O mal se torna um "erro", um estado de imperfeição que deve ser eventualmente ultrapassado por mais comércio e "desenvolvimento" econômico. A partir de agora, não é mais a ética que justifica os interesses, mas o interesse que tenta justificar a ética. Em sua carta de 1814, dirigida a Thomas Law, Jefferson escreveu: "A resposta é que a natureza constituiu a utilidade para o homem como a maior das virtudes" (12). Cem anos depois, o juiz Oliver Wendell Holmes acrescentou:


"O melhor teste da verdade é o do pensamento de conseguir ser aceito na competição do mercado, e essa verdade é o único fundamento sobre o qual seus desejos podem ser realizados com segurança".(13)


Parece que na América a verdade se tornou uma questão comercial. Televangelistas pregam o "evangelho da prosperidade", ficar rico é sinal de ser salvo, antes de fazer seus constantes apelos por doações.


Os puritanos retiveram de Locke a ideia de que todos os outros direitos humanos derivam do "direito natural à propriedade". Para Madison, "o primeiro objetivo do governo" é garantir a aquisição de propriedade. Em 1792, ele disse: Em uma palavra, como é dito que o homem tem um direito à sua propriedade, pode-se dizer igualmente que ele tem uma propriedade em seus direitos" (14). Direitos são interpretados como atributos inerentes à natureza humana, algo que os indivíduos possuem por causa de sua pertença à espécie humana, e são estes direitos que os governos devem "garantir".

A Nova Direita rejeita totalmente essa noção de direitos subjetivos, que se opõe de forma absoluta à noção tradicional de lei objetiva. Nessa perspectiva, o direito é uma relação de equidade, que permite a todos conquistar o que lhe cabe. Similarmente, a Nova Direita rejeita a ideia de que a propriedade privada deva ser um absoluto.

Tal ideia do homem era inerente às bases de uma sociedade apropriadamente descrita por Ezra Pound como uma "civilização puramente comercial". Suas palavras ecoam as de Tocqueville:

"As paixões que agitam os americanos mais profundamente são paixões comerciais e não paixões políticas, ou melhor, eles levam os hábitos do comércio para a política". (15)


A América certamente não é a primeira república comercial na história, mas ela é a primeira a ter afirmado que absolutamente nada deve limitar as atividades econômicas, por elas serem os melhores meios para se atingir o melhoramento de toda a humanidade. Estando por conta própria, o indivíduo conta na medida em que sua atividade externa segue crescendo. Naturalmente, apenas sua performance econômica pode medir adequadamente o seu valor. "Na América", escreveu Hermann Keyserling, "as pessoas realmente creem que os ricos são superiores simplesmente por terem dinheiro; na América, ter dinheiro cria, de fato, direitos morais".


Max Horkheimer e Theodor W. Adorno observaram a partir de sua perspectiva:

"Aqui na América, não há diferença entre um homem e deu destino econômico. Um homem é feito de seus bens, renda, posição e prospectos. A mistura econômica coincide completamente com o caráter interior de um homem. Todo mundo vale o que ganha e ganha o que vale". (16)


A competição capitalista representa o mais ético tribunal: os ricos são os "vencedores", e os "vencedores" são os justos. Essa é a primazia da civilização do ter sobre a civilização do ser.


Tais traços não contribuem muito para o pensamento meditativo e para a reflexão interior. Quando o elo com outros é nutrido apenas pelo respeito por bens materiais e pelo Todo-Poderoso Dólar, o resultado é alienação sem fronteiras. Para os americanos, nota Anaïs Nin em seu diário, "é um pecado ter uma vida interior". Essas palavras podem soar excessivas, mas ainda assim elas refletem as mesmas conclusões do americano Christopher Lasch. Nos EUA há uma tendência consistente de crer que a inteligência deve ser reduzida a conhecimento técnico e que a fixação com questões econômicas deve ajudar a dispensar com o mundo das ideias puras. Quem quer que tente expressar uma ideia original e profunda corre o risco de se deparar com a resposta: "Não seja tão negativo. Seja prático! Pense positivo!".

Para os Pais Fundadores o propósito do governo era garantir os "direitos inalienáveis" dos indivíduos que foram "criados iguais". Assim, a vida política foi reduzida à moralidade e à lei. O dissidente americano H.L. Mencken brincou que o exato oposto era verdadeiro:

"O pior governo é o mais moral. Um governo composto de cínicos é não raro bastante tolerante e humanista. Mas quando fanáticos estão no topo não há limite para a opressão". (17)


Nos Estados Unidos, a ação política deve sempre começar com uma súbita onda de consciência moral ("Algo deve ser feito em relação a isso!"), o que invariavelmente leva a um exame "técnico" do assunto em questão. A própria lei é um modo de expressão que estabelece formas jurídicas de características morais inerentes à ideologia dos direitos humanos. Daí a extraordinária importância dos advogados na política americana, que Michel Crozier chama de "delírio dos procedimentos" e "loucura legal". Enquanto isso, a superioridade intrínseca da vida privada sobre a vida pública deve ser declarada em voz alta em todos os lugares; a "sociedade civil" sobre o mundo da política, os negócios e a competição econômica sobre o bem comum. "Um americano, seja ele um funcionário do governo ou homem na rua", escreve Thomas Molnar, "está convencido de que a política enquanto tal é uma coisa ruim e que as pessoas precisam encontrar outra coisa para se comunicar e estabelecer relações pacíficas". Como afirmei acima, os americanos estão inclinados a pensar que o mal poderia desaparecer e que é possível remover o traço trágico da existência humana. É por isso que eles querem abolir a política e, ao mesmo tempo, levar a história a um fim. "A América foi construída para que ela possa sair da história", escreveu Octavio Paz. O "neoconservador" americano Francis Fukuyama acreditava poder anunciar seu fim.


Travar guerras sempre significou para os americanos uma "cruzada" de moralidade. É por isso que não é suficiente para eles obter apenas a vitória militar. Eles também devem aniquilar o inimigo, que é invariavelmente retratado não como um líder ou um Estado que por acaso é adversário, mas como a encarnação do mal. Sob o disfarce de "intervenção humanitária" ou batalhas contra "terroristas", as guerras americanas são sempre "guerras justas", isto é, guerras de justa causa - e não guerras contra um justus hostis ("inimigo justo"). Por isso, o inimigo deve ser invariavelmente descrito não apenas como o inimigo do momento (que poderia eventualmente se tornar um aliado no futuro), mas como um criminoso que merece punição e reeducação.

As diferenças parecem ser profundas entre o pensamento político na Europa continental e a mentalidade americana, marcada por uma visão econômica, comercial e processual do mundo, pela onipresença dos valores bíblicos, bem como pelo otimismo tecnológico, pelo contratualismo, a linguagem de "direitos", e a crença no progresso.

Eu acho que conheço os Estados Unidos bem, como eu perambulei por lá em muitas ocasiões. Eu viajei em todas as direções, de Washington, DC, para Los Angeles, de Nova Orleans para Key Largo, de San Francisco para Atlanta, de Nova York para Chicago. Eu, obviamente, me deparei com uma série de coisas de que gostei muito. Os americanos são amigáveis ​​e acolhedores (mesmo que o relacionamento humano seja frequentemente superficial). Eles têm um senso tangível de comunidade. Suas maiores universidades oferecem condições de trabalho com as quais os europeus só poderiam sonhar. Não consigo esquecer a influência que os filmes americanos tinham sobre mim em um momento em que eles não estavam limitados a efeitos especiais ou besteirol de super heróis. Especialmente impressionante para mim, eram figuras da literatura americana como Mark Twain, Edgar Allan Poe, Herman Melville, John Steinbeck, Ernest Hemingway, John Dos Passos, William Faulkner e outros. Mas também detecto o lado reverso do "modo de vida americano": a cultura vista como mercadorias perecíveis ou como "entretenimento", uma concepção tecnomórfica da vida humana, destinada a transformar as pessoas em terminais remotamente controlados ou computadores, relações de gênero falsas, uma civilização automobilística e arquitetura comercial (há uma sociabilidade mais genuína em um mercado local africano do que em um supermercado americano - um símbolo privilegiado do niilismo ocidental), crianças obesas educadas pela televisão, glorificação dos "vencedores" e a obsessão pelo consumo, fast food, uma mistura de decretos puritanos e transgressões histéricas, corrupção hipócrita, etc. Sim, estou ciente do risco de ser acusado de parcialidade. Mas devo admitir que, para a América dos "meninos dourados", dos "rednecks", dos "fisioculturistas" e "bimbos", do "sonho americano" e das líderes de torcida, dos "fazedores de dinheiro" e "corretores" em Wall Street, não tenho a menor simpatia.

O globalismo é hoje sinônimo de americanismo? Somos tentados a responder afirmativamente. O fato é que os Estados Unidos nunca deixaram de exportar seus problemas para o resto do mundo, começando pela Europa. Nas pesquisas de opinião, a hostilidade em relação à globalização é muitas vezes acompanhada pela rejeição da hegemonia americana. Políticamente e culturalmente, a globalização significa, em grande parte, um processo de americanização, já que a superpotência dominante continua exportando suas mercadorias, seu capital, seus serviços, sua tecnologia, mas também sua "indústria do imaginário", sua cultura, sua linguagem, seus padrões de vida e sua própria cosmovisão.

Mas ao invés de americanização, não seria mais apropriado falar em "ocidentalização"? Muitos americanos se consideram "ocidentais", com alguns até mesmo usando o termo "O Ocidente" como sinônimo do "mundo branco" (politicamente uma expressão sem sentido).

Etimologicamente, "o Ocidente" é um lugar onde o sol se põe, um lugar onde as coisas perecem, e onde a história chega ao fim. No passado, este termo designava um dos dois impérios (pars occidentalis) nascidos do desmembramento do Império Romano. Subsequentemente, o termo se tornou sinônimo da "civilização ocidental". Hoje, como muitos outros termos, ele está em processo de assumir uma aura econômica, na medida em que os países ocidentais são primariamente designados como países "desenvolvidos". Este não é um termo, porém, que eu uso em sentido positivo. Em minha opinião, "o Ocidente" se tornou agora o veículo, em contraste com a Europa, de um modelo social que se tornou a imagem espelhada do niilismo. Durante minhas viagens ao redor do mundo, eu testemunhei o que acontece a culturas enraizadas quando elas são afetadas pelo "Ocidente": tradições rapidamente são transformadas em folclore para turistas, laços sociais são desfeitos, os mores se tornam utilitários, a linguagem e a música americana permeiam a mente, e a paixão pelo dinheiro se torna sobrepujante.

Muitas vezes, é entendido pela expressão "O Ocidente", o agregado composto pelos Estados Unidos da América e pela Europa. Mas este agregado, supondo que alguma vez tenha existido, já está desmoronando, como já foi observado há alguns anos por Immanuel Wallerstein.(18) A lacuna transatlântica se amplia cada dia mais e mais. A globalização, ao mesmo tempo que exacerba a concorrência, revela profundas divergências entre interesses europeus e interesses americanos. No nível geopolítico, as divergências são ainda mais flagrantes: os Estados Unidos são um poder marítimo, enquanto a Europa é um poder continental. Como foi demonstrado por Carl Schmitt, a lógica de Terra vs. Mar representa duas lógicas conflitantes.(19) A Terra se opõe ao Mar, assim como a política se opõe ao comércio, o limite à onda, o elemento telúrico ao elemento oceânico. Portanto, eu não me identifico como "ocidental". Eu sou europeu.

Visto do ângulo da economia, o capitalismo não nasceu em todo o Atlântico, embora tenha sido lá que ele foi incorporado à ideologia nacional: o primado do contrato, a redução do Estado, a crítica do "governo grande", a defesa da concorrência e do livre comércio, etc. É também nos Estados Unidos que nasceu o conceito de "governança" - primeiro aplicado aos negócios e depois à vida política e social. Não deve ser uma surpresa que, desde 1945, a economia dos EUA se tornou o palco central do sistema financeiro internacional. Foram os Estados Unidos que estabeleceram em 1947 o Fundo Monetário Internacional (FMI) e o Acordo Geral sobre Tarifas e Comércio (GATT), sucedido em 1995 pela Organização Mundial do Comércio (OMC). Essas foram as instituições que liberaram os movimentos de capital em 1974, a fim de financiar os déficits da América. No âmbito do capital financeiro, a América ainda mantém uma participação muito maior em relação ao seu setor industrial. Ela estabelece as regras para o comércio internacional, enquanto suas políticas monetárias continuam sendo o principal mecanismo de regulamentação da acumulação financeira em todo o mundo.

Assim como muitos europeus, eu fico impressionado com o fato de os conservadores americanos defenderem, quase sem exceção, um sistema capitalista cuja expansão destrua metodicamente tudo o que supostamente desejam conservar. Apesar da crise estrutural que o sistema capitalista experimentou nos últimos dois anos, os conservadores americanos continuam a celebrar o capitalismo como um sistema que supostamente respeita e garante a liberdade individual, a propriedade privada e o livre comércio. Eles acreditam nas virtudes intrínsecas do mercado, cujo mecanismo eles apreciam como um paradigma de todas as relações sociais. Eles acreditam que o capitalismo tem algo a ver com democracia e liberdade. Eles acreditam na necessidade metafísica, não apenas econômica, do "crescimento" perpétuo. Eles pensam que o consumo é igual à felicidade e que "mais" é sinônimo de "melhor".

O capitalismo, no entanto, não é "conservador". É o oposto disso. Karl Marx já observou que o desmantelamento do feudalismo e a erradicação das culturas e valores tradicionais são o resultado do capitalismo que, por sua vez, afoga tudo na "água gelada do cálculo egoísta". (20) Hoje, o sistema capitalista, mais do que nunca antes, está voltado para o excesso de acumulação de capital. Precisa de mais lojas de comércio, mais e mais mercados e mais e mais lucro. Bem, tal objetivo não pode ser alcançado a menos que tudo o que esteja no caminho seja desmantelado, começando pelas identidades coletivas. Uma economia de mercado de pleno direito não pode operar de forma sustentada, a menos que as pessoas internalizem uma cultura modista, o consumo e o crescimento ilimitado. O capitalismo não pode transformar o mundo em um mercado vasto - o que, com certeza, é seu principal objetivo - a menos que o planeta seja achatado e todas as pessoas renunciem à sua imaginação simbólica e continuem a indulgir em uma febre pela acumulação infinita de algo novo.

Esta é a razão pela qual o capitalismo, na tentativa de apagar as fronteiras, também é um sistema que se tornou muito mais efetivo e muito mais destrutivo do que o comunismo. A razão para isso é que a lógica econômica coloca lucro acima de tudo. Adam Smith escreveu que o comerciante não possui pátria além do território onde ele consegue o maior lucro. É a essa lógica da mercadoria, inspirada frequentemente pelos Estados Unidos da América, que a Nova Direita se opõe firmemente.