29/10/2015

Angel Millar - Mishima: A Estética da Ação

por Angel Millar



Já se passaram mais de quatro décadas desde que Yukio Mishima - dramaturgo, samurai moderno, nacionalista, fisiculturista, e de modo geral um enigma japonês - desencadeou uma onda de choque por todo o Japão cometendo seppuku, o suicídio ritual do samurai. Porém, hoje, ele está de volta à vista do público. Julho viu o lançamento do filme 11.25 O Dia em que Mishima Escolheu seu Destino de Koji Wakamatsu, e a primeira exibição solo em um museu público do Japão, do fotógrafo e colaborador de Mishima, Kishin Shinoyama, foi inaugurada.

Shinoyama capturou algumas das imagens mais controversas do dramaturgo japonês, em uma coleção de fotografias chamada Barakei (Ordálio [ou Tortura] por Rosas). O próprio Mishima esteve intimamente envolvido em conceitualizar as imagens, e, em grande medida, elas são uma meditação na qual os fantasmas mentais emergem, meio pensados, meio sentidos. Tiradas em um preto-e-branco granuloso, as fotografias justapõem o corpo musculoso de Mishima com esculturas e pinturas barrocas e desenhos do corpo humano.

Em uma fotografia, Mishima está envolvido em uma mangueira de jardim, como se oprimido pela mundaneidade em si. Em outra, ele está amarrado a uma árvore, em imitação a São Sebastião, com seu corpo perfurado por flechas. Parte erotismo, parte auto-idolatria, parte contemplação da mortalidade, através de Barakei, o autor japonês se impulsiona dos mundano reino do erotismo, para além do véu da morte, para se demorar entre os anjos.

O espírito de Barakei pode ser considerado tântrico - aquela prática hindu e budista da unio mystica pela união sexual. Mas parece, em todos os sentidos, ser uma fusão de estética e ideias tanto ocidentais como japonesas. Quando jovem, Mishima havia sido frágil e pouco atlético. Mas ele resolveu forjar para si mesmo um novo e masculino corpo, e passou à prática do fisiculturismo (que havia sido introduzido no Japão por soldados americanos - os vitoriosos da Segunda Guerra Mundial) e do kendô. Talvez por causa do desprezo de Mishima pelo corpo frágil, Barakei possui uma insinuação de militância. Tradicionalmente, no Tantra, em contraste, o devoto era às vezes obrigado a realizar a união sexual com um membro do sexo oposto que ele achasse feio. Aparentemente isso tinha como objetivo libertar o devoto de tomar a aparência das coisas por sua substância.

Na cultura japonesa clássica, porém, a relação entre aparência e essência é enfatizada. O pintor em tinta pratica pintar um único círculo, com um único gesto e uma única exalação. Se ele perder a concentração mesmo que por um segundo, isso ficará evidenciado no círculo, que sairá ovalado, ou terá uma protuberância. Aparência e espírito estão, para o japonês clássico, interligados.

Sensualidade e espiritualidade profundas estão conectados, não necessariamente exclusivamente pelo prazer - como se encontra na religião persa, o zoroastrismo, onde as riquezas são vistas como reflexo dos céus - mas também por emoções mais obscuras, e mesmo através da morte. Notavelmente, o japonês ukiyo era um termo budista, significando fadiga (uki) da vida (yo). Porém seu significado se transformou, se tornando associado com os distritos de prazer de Edo (Tóquio), e suas cenas de bebedeira, cortesãs, e todo o resto. O mundo flutuante, neste sentido, era o mundo do prazer temporário - refletindo a existência temporal do homem. Enquanto gênero, impressões xilográficas lidando com os distritos do prazer se tornaram conhecidas como ukiyo-e, literalmente "imagens do mundo flutuante".

Em Mishima: Uma Visão do Vácuo - uma obra particularmente pomposa sobre o dramaturgo - Marguerite Yourcenar liga as poses de Mishima no Barakei ao Hagakure, um manual samurai do século XVIII que recomenda que o guerreiro medite sobre sua morte iminente, para que ele não mais tema a morte. O Hagakure lhe ordena imaginar ser "cortado em pedaços ou mutilado por flechas" entre outras mortes medonhas. Assim, é fácil imaginar que Mishima posando como santo perfurado por flechas era uma influência dessa tradição. Porém, isso parece ignorar a mensagem de Mishima: i.e., que as ações - especialmente as ações militares - são estéticas, não mecânicas ou puramente práticas.

A mensagem de Mishima - jamais berrada dos telhados - está inteiramente de acordo com a história e sensibilidade japonesas. Muitos samurais - incluindo o célebre Miyamoto Musashi - foram artistas e calígrafos, além de espadachins. Ademais, influenciados pelo Zen Budismo, os japoneses há muito tem considerado as diferentes artes como revelatórias ao praticante do mesmo satori (entendimento) ou kensho (compreensão da verdadeira natureza do eu), não raro em uma revelação momentânea durante a prática. Arranjo floral e a arte do guerreiro, enquanto tais, não são duas coisas diferentes. Como diz o Hagakure, "É ruim quando uma coisa se torna duas. Não se deve procurar por nada além no Caminho do Samurai. É igual para qualquer coisa chamada de Caminho. Se isso é compreendido dessa forma, o samurai se torna capaz de ouvir sobre todos os caminhos e ficar cada vez mais de acordo com o seu próprio".

O "caminho" (Do) de Mishima o levou de escrever a atuar em filmes (onde ele interpretou personagens como mafiosos e detetives), a formar seu próprio exército privado. A Tatenokai (Sociedade do Escudo) consistia em cem homens jovens. Mishima disse a ter formado para dar aos estudantes - que não se encaixavam facilmente no novo zeitgeist marxista - um lugar seu. Mas, mesmo aqui, a preocupação estética de Mishima o levou a desenhar os uniformes, se inspirando nos uniformes mais clássicos dos exércitos europeus. (Os "úniformes rígidos nos fazem pensar na Alemanha e na antiga Rússia", ressalta Yourcenar).

Na realidade, a Tatenokai não era uma unidade de combate. Seu propósito primário pode ter sido, de fato, puramente estético: lembrar Mishima e despertar o Japão para a ideia de que ainda poderia haver um modo de vida espiritual, estético e ao mesmo tempo masculino na era moderna - não um "caminho" como na palavra inglesa, mas como no Do japonês ou no Tao chinês. Notavelmente, Mishima era insistente de que seu exército não deveria se envolver em baixarias e atividades pequenas: "Sem demonstrações de rua para nós, sem placas, sem coqueteis molotov [...] sem apedrejamentos", ele determinou. "Até o último momento desesperado, nos recusaremos em nos comprometer à ação. Pois somos o exército menos armado, e mais espiritual do mundo".

Em 1970, Mishima e membros da Tatenokai entrar na Estação Ichigaya das forças de auto-defesa do Japão. Mishima apareceu na sacada, discursando para os soldados abaixo sobre como o Japão havia se tornado materialista e decadente, ainda que suas palavras logo fossem abafadas pelos sons dos helicópteros da imprensa. Finalmente, longe das vistas, ele cometeu seppuku, abrindo seu estômago com uma espada samurai.

O Japão ficou constrangido com o suicídio público de Mishima, e, em alguma medida, ainda sente certo desconforto em relação ao dramaturgo. Isso é compreensível. Mas devemos parar para refletir que, no Ocidente pelo menos, os heróis da era moderna, não raro, morreram de overdoses, afogados no próprio vomito ou assassinados em tiroteios. E, não infrequentemente isto é visto como virtualmente admirável - prova de sua sinceridade. Isso obviamente só é prova da superficialidade bárbara dessas pessoas que encontram entretenimento na morte.

Apesar de seu suicídio - e estilo muitas vezes extravagante (o que é extremamente não-nipônico) - as obras de Mishima são consideradas clássicas. Mesmo no Ocidente, seus livros são leitura obrigatória para quem frequenta cursos de literatura japonesa na universidade. É possível separar o homem de sua arte, e sua morte da mensagem de sua vida: que as ações são estéticas, e que a masculinidade, em seu ápice, é espiritual; preocupada, como deve ser, com valores e beleza, força interior e disciplina.