16/03/2015

Ghada Chehade - Como o Ocidente vende a guerra e compra a morte: Sobre Gaddafi, Assad e Putin

por Ghada Chehade

Traduzido por Raphael Camisão



Enquanto persiste o conflito na Ucrânia e negociações de paz entre Putin e líderes ocidentais como Merkel e Hollande continuam, é importante observar os fatores e os interesses econômicos que se beneficiam da troca de regime na Ucrânia e como isso se compara a situações como a síria, a líbica e a iraquiana. Estes são ângulos e interesses relativos a estes conflitos dos quais pouco escutamos relatados pela mídia de massa ocidental, ângulos e interesses estes que não buscamos por estarmos envolvidos demais com dramas políticos ou humanos. A mídia de massa, por exemplo, passou tanto tempo demonizando um único inimigo, fosse ele Putin na Ucrânia, Assad na Síria, Gaddafi na Líbia ou Saddam Hussein no Iraque, que não exploraram criticamente como agentes externos podem explorar ou até apoiar tais conflitos e situações para assegurarem motivos político-econômicos como o acesso ao petróleo, abrindo caminho para empréstimos destrutivamente condicionais no FMI ou a derrubada de políticas domésticas que atacam os interesses mundiais imperiais e econômicos.

Existe na mídia ocidental um binário perigosamente falso em que a oposição a agendas corporativistas ou imperialistas ocidentais é um sinônimo do apoio a “homens maus” como, por exemplo, Putin ou Gaddafi. Isso é parte do que chamo de política de distração ou política de amálgama, em que a oposição a políticas neoliberais e imperiais – como empréstimos do FMI com condições de austeridade que devastam e empobrecem uma nação, seu povo e sua agricultura – é amalgamada com o apoio por certos “tiranos” (como definidos pelo Ocidente).

No caso de uma mudança de regime e do conflito concomitante na Ucrânia, a mídia ocidental está tão fixada na demonização do presidente russo Vladimir Putin com a anexação da Crimeia que pouca atenção é dada ao que JP Sottile chama de “anexação corporativa da Ucrânia”. Comentando o plano econômico para o país, Sottile ressalta que “para companhias americanas como Monsanto, Cargill e Chevron, há uma mina de ouro de lucros a se tirarem do agronegócio e da exploração energética”.

Alguns legistas europeus veem o conflito ucraniano como uma cortina de fumaça a fim de abrir caminho para o FMI, o Banco Mundial e o BERD com seus negócios relacionados à agroquímica e à biotecnologia agrícola, roubando a cobiçada e valorizada terra agrícola ucraniana. A política de distração no conflito ucraniano – isto é, o bem versus o mal personificado em Vladimir Putin – esconde a realidade do vasto roubo terras agrícolas que alimentará as corporações do agronegócio ocidental enquanto inauguram políticas venenosas e práticas como a colheita de organismos geneticamente modificados. Com Yanukovych de fora, o novo governo ucraniano concordou em tomar medidas de austeridade em troca pela “ajuda” do FMI e do Banco Mundial. Além do impacto devastador que essas medidas terão sobre os níveis de pobreza e o padrão de vida dos ucranianos, as medidas de austeridade também permitirão que corporações do agronegócio ocidental se aproveitem de restrições nas leis de produção de organismos geneticamente modificados levadas a um padrão mais próximo do resto da Europa. A Ucrânia, como Lendman explicou, foi, por muito tempo, considerada o “cesto de pão” da Europa. “Seu solo escuro e rico é altamente valorizado” e “ideal para o crescimento de grãos”. Com um terço da terra agrícola europeia, o potencial do país é vasto, fazendo dele um alvo ideal para os gigantes ocidentais do agronegócio que buscam se aproveitar de riquezas econômicas massivas alterando e envenenando o fornecimento de comida da região. Para muitos analistas, estas prospectivas econômicas estão por trás do conflito ucraniano.

Isto é, de certa forma, remanescente dos motivos econômicos para a invasão do Iraque em 2003 e a “guerra ao terror”. É sabido que o governo Bush mentiu sobre Saddam Hussein, antes aliado e parceiro de crime (de guerra), depois inimigo número um, que teria armas de destruição em massa, um pretexto para invadir um país. Como explico em meu próximo livro (NT: a autora Ghada Chehade pretende lançar um livro sobre a Guerra ao Terror ainda pelo fim de 2015), os motivos para a Guerra do Iraque foram majoritariamente econômicos, com megacorporações norte-americanas ganhando contratos massivos – pagos com o dinheiro dos contribuintes – para que o país que as Forças Armadas do país destruíram seja “reconstruído” (em infraestrutura, privatização de serviços públicos, etc.). Em adição aos contratos de desenvolvimento, lucro massivo foi gerado por petroleiras como Halliburton e Chevron. A Halliburton, em si, já foi gerenciada por ninguém mais, ninguém menos que o ex-vice-presidente Dick Cheney, que alegadamente ganhou 39,5 bilhões na Guerra do Iraque.

Da mesma forma, é perceptível que o plano para a intervenção na vida foi (e é) impulsionado por interesses no petróleo, e não por preocupações humanitárias. Nesta análise compreensiva da situação, Nafeez Ahmed explica que a violência e a morte de civis de ambos os lados do conflito é “explorada pela estreita competição geopolítica para controlar o petróleo do Oriente Médio” e o fornecimento de gás no mesmo. Seu relato conta com várias fontes oficiais, incluindo documentos que vazaram do governo, oficiais aposentados da OTAN e o ex-ministro do exterior francês Roland Dumas, demonstrando como a situação na Síria está ligada a antigos desejos ocidentais para se assegurar o controle sobre o petróleo e o gás do Oriente Médio, com os EUA e o RU treinando as forças sírias de oposição desde 2011 para causarem o colapso do regime sírio “de dentro”.

Enquanto uma usurpação ocidental de petróleo é um fator maior no Iraque, na Líbia e na Síria (além de proteger o dólar e os bancos europeus, no caso da Líbia), o caso na Ucrânia é majoritariamente pelo domínio de terras e pelos planos ocidentais do agronegócio de organismos geneticamente modificados – introduzidos por um empréstimo condicional do FMI de 17 bilhões de dólares – para o solo rico e fértil do país. É interessante perceber, como faz Joyce Nelson, do The Ecologista, que, no fim de 2013, Viktor Yanukovych, então presidente da Ucrânia, recusou um acordo de associação à União Europeia ligado a um empréstimo de 17 bilhões de dólares do FMI, optando por um auxílio russo de 15 bilhões seguido por um desconto no gás natural russo. Como Nelson explica, “sua decisão foi um fator decisivo nos protestos fatais subsequentes que o levaram a sair do cargo em fevereiro de 2014 e à crise atual”. Significa que o empréstimo que corre pelo FMI e suas condições econômicas vorazes estavam sobre a mesa antes da abdicação do ex-presidente Yakunovych, e que a mudança de regime no país convenientemente fez com que o empréstimo se fizesse possível.

Em adição à rica terra arável ucraniana sendo aberta para o agronegócio ocidental e para a produção de organismos geneticamente modificados, empréstimos do FMI tipicamente vêm com condições econômica estritas de reestruturação na forma de programas de programas de ajuste estrutural (SAPs). Estes programas essencialmente forçam a nação credora a reestruturar sua economia cortando gastos públicos e subsídios em áreas como a empregabilidade, o apoio à renda e a educação, além da privatização de serviços previamente acessíveis, como a saúde. Se tais condições do FMI forem aplicadas à Ucrânia, devastarão e empobrecerão o país.

Questões e agendas político-econômicas tão importantes na Ucrânia raramente são avaliadas amplamente, se mesmo avaliadas, na mídia de massa. Enquanto o conflito na Ucrânia continua e a mídia de massa ocidental foca predominantemente nos dramas políticos e humanos do conflito e no trato de cessar-fogo Minsk 2, apenas se pode esperar que o povo ucraniano não sofra o mesmo destino econômico que o povo iraquiano, o sírio e o líbio.