18/01/2015

Lucian Tudor - A Crítica Conservadora Revolucionária de Oswald Spengler

por Lucian Tudor



Oswald Spengler é já bem conhecido como um dos maiores pensadores da Revolução Conservadora alemã do início do século XX. Na verdade, ele é frequentemente citado como tendo sido uma das influências intelectuais mais determinantes do conservadorismo alemão no período entre-guerras - junto a Arthur Moeller van den Bruck e Ernst Jünger - ao ponto de sua filosofia pessimista cultural ser vista como representativa das perspectivas conservadoras revolucionárias em geral (ainda que, na realidade, a maioria dos conservadores revolucionários tivesse visões mais otimistas). [1]

Para iniciar nossa discussão, forneceremos um breve resumo dos principais temas da filosofia de Oswald Spengler. [2] Segundo Spengler, cada Alta Cultura possui sua própria "alma" (isso se refere ao caráter essencial de uma Cultura) e passa por ciclos previsíveis de nascimento, crescimento, realização, declínio e falecimento que se assemelham ao da vida de uma planta. Citando Spengler:

"Uma Cultura nasce no momento em que uma grande alma desperta da proto-espiritualidade da sempre infantil humanidade, e se aparta, uma forma a partir do informe, uma coisa limitada e mortal a partir do ilimitado e duradouro. Ela floresce sobre o solo de uma paisagem precisamente definível, à qual, tal qual planta, ela permanece atada. Ela morre quando a alma atualizou a soma plena de suas possibilidade na forma de povos, línguas, dogmas, artes, Estados, ciências, e reverte à proto-alma" [3]

Há uma distinção importante nessa teoria entre Kultur ("Cultura") e Zivilisation ("Civilização"). Kultur concerne a fase inicial de uma Alta Cultura que é marcada pela vida rural, religiosidade, vitalidade, vontade de poder, e instintos ascendentes, enquanto Zivilisation concerne a fase posterior que é marcada pela urbanização, irreligião, intelecto puramente racional, vida mecanizada, e decadência. Ainda que ele reconhecesse a existência de outras Altas Culturas, Spengler focou particularmente em três Altas Culturas as quais ele distinguiu e teceu comparações entre: a Magiana, a Clássica (greco-romana), e a atual Alta Cultura Ocidental. Ele mantinha a visão de que o Ocidente, que estava em sua fase tardia de Zivilisation, logo entraria em uma fase final imperialista e "cesarista" - uma fase que, segundo Spengler, marca o lampejo final antes do fim de uma Alta Cultura. [4]

Talvez a contribuição mais importante de Spengler à Revolução Conservadora, porém, foi sua teoria do "Socialismo Prussiano", que formava a base de sua visão de que conservadores e socialistas deveriam se unir. Em sua obra ele argumentava que o caráter prussiano, que era o caráter germânico por excelência, era essencialmente socialista. Para Spengler, o verdadeiro socialismo era primariamente uma questão de ética, mais do que de economia. Esse socialismo prussiano ético significava o desenvolvimento e prática da ética de trabalho, da disciplina, da obediência, de um senso de dever ao bem maior e ao Estado, do auto-sacrifício, e da possibilidade de atingir qualquer cargo pelo talento. O socialismo prussiano era diferenciado do marxismo e do liberalismo. O marxismo não era socialismo autêntico por ser materialista e baseado na luta de classes, que se situava em contraste com a ética prussiana de Estado. Também em contraste ao socialismo prussiano estava o liberalismo e o capitalismo, que negava a idéia de dever, praticava um "princípio de pirataria", e criou o governo do dinheiro. [5]

As teorias spenglerianas de ciclos culturais previsíveis, da separação entre Kultur e Zivilisation, da Alta Cultura Ocidental como estando em um estágio de declínio, e de uma forma não-marxista de socialismo, receberam bastante atenção na Alemanha do século XX, e não há dúvidas de que elas influenciaram o pensamento de direita à época. Porém, normalmente se esquece o quão divergentes as perspectivas de muitos conservadores revolucionários eram das de Spengler, ainda que eles de fato estudassem e bebessem de suas teorias, assim como uma ênfase excessiva sobre a teoria spengleriana na Revolução Conservadora levou muitos estudiosos a ignorarem a variedade de outras influências importantes sobre a direita alemã. Ironicamente, aqueles que foram mais influenciados por Spengler - não apenas os conservadores revolucionários alemães, mas também posteriormente os Tradicionalistas e a Nova Direita - possuem uma apreciação misturada com críticas. É essa realidade que precisa ser enfatizada: a maioria dos intelectuais conservadores que apreciavam Spengler simultaneamente lançaram a importantíssima mensagem de que a filosofia de Spengler precisa ser vista criticamente, e que ela não é aceitável como um todo.

A crítica mais importante a Spengler entre intelectuais conservadores revolucionários foi a feita por Arthur Moeller van den Bruck. [6] Moeller concordava com certas idéias básicas na obra de Spengler, incluindo a divisão entre Kultur e Zivilisation, com a idéia do declínio da Cultura Ocidental, e com seu conceito de socialismo, que Moeller já havia expressado antes e de forma um pouco diferente em Der Preussische Stil ("O Estilo Prussiano", 1916). [7] Porém, Moeller resolutamente rejeitava a visão spengleriana determinista e fatalista da história, bem como a noção de ciclos culturais destinados. Moeller afirmava que a história era essencialmente imprevisível e não-fixa: "Há sempre um começo (...) a História é a história daquilo que não calculado". [8] Ademais, ele afirmava que a história não devia ser vista como um "círculo" (à maneira de Spengler) mas como uma "espiral", e uma nação em declínio poderia efetivamente reverter seu declínio se certas mudanças e eventos psicológicos ocorressem dentro dela. [9]

A contradição mais radical com Spengler feita por Moeller van den Bruck foi a rejeição da morfologia cultural de Spengler, já que Moeller acreditava que a Alemanha não podia nem mesmo ser classificada como parte do "Ocidente", mas que ela representava uma cultura distinta, uma que tinha mais em comum em espírito com a Rússia do que com o "Ocidente", e que estava destinada a ascender enquanto França e Inglaterra cairiam. [10] Porém, nós devemos notar aqui que a noção de que a Alemanha não é ocidental não era singular a Moeller, pois Werner Sombart, Edgar Julius Jung e Othmar Spann todos afirmaram que os alemães pertenciam a um tipo cultural bastante diferente do das nações ocidentais, especialmente as do mundo anglo-saxão. Para estes autores, a Alemanha representava uma cultura que estava mais orientada para a comunidade, a espiritualidade e o heroísmo, enquanto o "Ocidente" moderno estavam mais orientados para o individualismo, o materialismo e a ética capitalista. Eles diziam ainda que qualquer presença de características ocidentais na Alemanha moderna se devia ao envenenamento recente da cultura alemã pelo Ocidente que o povo alemão tinha o dever de superar através de uma revolução sociocultural. [11]

Outro intelectual fundamental da Revolução Conservadora alemã, Hans Freyer, também apresentou uma análise crítica da filosofia spengleriana. [12] Graças a sua visão de que não há progresso certo e determinado na história, Freyer concordava com a rejeição spengleriana da visão linear de progresso. A filosofia da cultura de Freyer também enfatizava o particularismo cultural e a disparidade entre povos e culturas, razão pela qual ele concordava com Spengler nos termos da concepção básica das culturas possuírem um centro vital e com a idéia de cada cultura marcando um tipo particular de ser humano. Sendo um proponente de um socialismo estatal comunitário, Freyer considerava o "socialismo prussiano" anti-individualista de Spengler satisfatório. Ao longo de suas obras, Freyer também discutiu muitos dos mesmos temas que Spengler - incluindo a função integradora da guerra, hierarquias na sociedade, os desafios de desenvolvimentos tecnológicos, forma e unidade culturais - mas de uma maneira distinta orientada na direção da teoria social. [13]

Porém, Freyer também afirmava que a idéia de tipos históricos (culturais) e de que as culturas eram o produto de uma essência que crescia ao longo do tempo estava já expressa de formas diferentes muito antes de Spengler nas obras de Karl Lamprecht, Wilhelm Dilthey e Hegel. É também notável que a própria sociologia das categorias culturais de Freyer diferia da morfologia de Spengler. Em suas primeiras obras, Freyer focou primariamente na natureza das culturas de povos particulares (Völker) ao invés das Altas Culturas mais amplas, enquanto em suas obras tardias ele enfatizou a interconexão de todas as várias culturas européias ao longo dos milênios. Rejeitando a noção spengleriana de culturas como sendo incomensuráveis, a história para Freyer "considerava a Europa moderna como sendo composta de 'camadas' de cultura do passado, e Freyer se esforçava para mostrar que grandes culturas históricas haviam surgido por inspiração do legado de culturas passadas". [14] Finalmente, rejeitando o determinismo histórico de Spengler, Freyer havia "alertado seus leitores para não se deixarem enfeitiçar pelas poderosas metáforas orgânicas do livro [Der Untergang des Abendlandes]... As demandas do presente e do futuro não poderiam ser 'deduzidas' de intuições nos padrões da cultura...mas eram finalmente baseados na 'aposta da ação' (das Wagnis der Tat)." [15]

Ainda outra importante crítica conservadora de Spengler foi feita pelo filósofo Tradicionalista perene italiano Julius Evola, ele próprio influenciado pela Revolução Conservadora mas tendo desenvolvido uma linha de pensamento bastante distinta. Em seu O Caminho do Cinabro, Evola demonstrou apreciação pela filosofia de Spengler, particularmente em relação À crítica da Zivilisation racionalista moderna e mecanizada do "Ocidente" e com a rejeição completa da idéia de progresso. [16] Alguns estudiosos, como H.T. Hansen, enfatizam a influência do pensamento de Spengler sobre o de Evola, mas é importante lembrar que as perspectivas culturais de Evola diferiam significativamente das de Spengler graças ao foco evoliano no que ele via como o papel em transformação de uma Tradição Perene metafísica através da história em oposição a culturas historicamente determinadas. [17]

Em sua crítica, Evola apontou que uma das principais falhas no pensamento de Spengler era que ele "carecia de qualquer entendimento de metafísica e transcendência, as quais incorporam a essência de cada genuína Kultur". [18] Spengler podia analisar a natureza da Zivilisation muito bem, mas sua perspectiva irreligiosa faziam com que ele entendesse pouco sobre as forças espirituais superiores que afetavam profundamente a vida humana e a natureza das culturas, sem o que não se pode compreender com clareza a característica definidora da Kultur. Como Robert Steuckers apontou, Evola também considerava a análise spengleriana das culturas clássica e oriental muito falhas, particularmente como resultado das influências filosóficas "irracionalistas" de Spengler: "Evola pensa que esse vitalismo leva Spengler a dizer 'coisas que nos fazem enrubescer' sobre o budismo, o taoísmo, o estoicismo e a civilização greco-romana (a qual, para Spengler, é meramente uma civilização de 'corporeidade')." [19] Também problemática para Evola era a "valorização spengleriana do 'homem faustiano', uma figura nascida na Era do Descobrimento, da Renascença e do humanismo; por sua determinação temporal, o homem faustiano é levado rumo à horizontalidade ao invés da verticalidade". [20]

Finalmente, devemos tomar nota da recepção mais recente da filosofia spengleriana na Nova Direita européia e no Identitarismo: as obras de Spengler tem sido estudadas e criticadas por quase todos os principais intelectuais neo-direitistas e identitários, incluindo especialmente Alain de Benoist, Dominique Venner, Pierre Krebs, Guillaume Faye, Julien Freund e Tomislav Sunic. A visão que a Nova Direita tem da teoria spengleriana é única, mas também bastante reminiscente das críticas conservadoras revolucionárias de Moeller van den Bruck e Hans Freyer. Como Spengler e muitos outros pensadores, os intelectuais da Nova Direita também criticam a "ideologia do progresso", ainda que seja significativo que, diferentemente de Spengler, eles não o fazem para aceitar a noção de ciclos rígidos na história nem para rejeitar a existência de qualquer progresso. Ao invés, a crítica da Nova Direita objetiva repudiar a noção desequilibrada de progresso linear e inevitável que deprecia toda cultura passada em favor do presente, reconhecendo ainda assim que algum progresso positivo de fato existe, defendendo a sua reconciliação com a cultura tradicional para se alcançar uma ordem cultural mais equilibrada. [21] Ademais, abordando o determinismo histórico de Spengler, Alain de Benoist escreveu que "de Eduard Spranger a Theodor W. Adorno, a principal crítica dirigida a Spengler evidentemente concerne seu 'fatalismo' e seu 'determinismo'. A questão é saber até que ponto o homem é prisioneiro de sua própria história. Até que ponto ele não pode mais mudar seu curso?" [22].

Como seus precursores conservadores revolucionários, a Nova Direita rejeita qualquer noção fatalista e determinista de história, e não acredita que qualquer povo esteja fadado ao declínio inevitável; "a decadência portanto não é um fenômeno inescapável, como Spengler erroneamente pensava", escreveu Pierre Krebs, ecoando os pensamentos de outros autores. [23] Enquanto os pensadores da Nova Direita aceitam a idéia spengleriana do declínio da cultura ocidental, eles situam a Europa e o Ocidente como duas entidades antagônicas. Segundo essa nova filosofia cultural, a cultura européia genuína está representada pelas inúmeras tradições enraizadas nas mais antigas culturas européias, e devem ser tidas como incompatíveis com o "Ocidente" moderno, que é a emanação cultural do velho liberalismo, do igualitarismo e do individualismo.

A Nova Direita pode concordar com Spengler de que o "Ocidente" está passando por um declínio, mas esse pessimismo original não obscurece o propósito da Nova Direita: o Ocidente encontrou a fase final de sua decadência, consequentemente devemos romper com a civilização ocidental e recuperar a memória de uma Europa liberada do igualitarismo..." [24] Assim, desde a perspectiva identitária, o "Ocidente" é identificado como uma entidade globalista e universalista que feriu as identidades de povos europeus e não-europeus. Da mesma maneira que os conservadores revolucionários clamavam aos alemães para afirmarem os direitos e identidade de seu povo em sua época, a Nova Direita clama pela superação da civilização ocidental cosmopolita e liberal para reafirmar a identidade espiritual e cultural mais profunda dos europeus, baseada na "regeneração da história" e uma referência a sua herança múltipla e multimilenar. 

[1] An example of such an assertion regarding cultural pessimism can be seen in “Part III. Three Major Expressions of Neo-Conservatism” in Klemens von Klemperer, Germany’s New Conservatism: Its History and Dilemma in the Twentieth Century (Princeton: Princeton University Press, 1968).

[2] To supplement our short summary of Spenglerian philosophy, we would like to note that one the best overviews of Spengler’s philosophy in English is Stephen M. Borthwick, “Historian of the Future: An Introduction to Oswald Spengler’s Life and Works for the Curious Passer-by and the Interested Student,” Institute for Oswald Spengler Studies, 2011, <https://sites.google.com/site/spenglerinstitute/Biography>.

[3] Oswald Spengler, The Decline of the West Vol. 1: Form and Actuality (New York: Alfred A. Knopf, 1926), p. 106.

[4] Ibid.

[5] See “Prussianism and Socialism” in Oswald Spengler, Selected Essays (Chicago: Gateway/Henry Regnery, 1967).

[6] For a good overview of Moeller’s thought, see Lucian Tudor, “Arthur Moeller van den Bruck: The Man & His Thought,” Counter-Currents Publishing, 17 August 2012, <http://www.counter-currents.com/2012/08/arthur-moeller-van-den-bruck-the-man-and-his-thought/>.

[7] See Fritz Stern, The Politics of Cultural Despair (Berkeley & Los Angeles: University of California Press, 1974), pp. 238-239, and Alain de Benoist, “Arthur Moeller van den Bruck,” Elementos: Revista de Metapolítica para una Civilización Europea No. 15 (11 June 2011), p. 30, 40-42. <http://issuu.com/sebastianjlorenz/docs/elementos_n__15>.

[8] Arthur Moeller van den Bruck as quoted in Benoist, “Arthur Moeller van den Bruck,” p. 41.

[9] Ibid., p. 41.

[10] Ibid., pp. 41-43.

[11] See Fritz K. Ringer, The Decline of the German Mandarins: The German Academic Community, 1890–1933 (Hanover: University Press of New England, 1990), pp. 183 ff.; John J. Haag, Othmar Spann and the Politics of “Totality”: Corporatism in Theory and Practice (Ph.D. Thesis, Rice University, 1969), pp. 24-26, 78, 111.; Alexander Jacob’s introduction and “Part I: The Intellectual Foundations of Politics” in Edgar Julius Jung, The Rule of the Inferiour, Vol. 1 (Lewiston, New York: Edwin Mellon Press, 1995).

[12] For a brief introduction to Freyer’s philosophy, see Lucian Tudor, “Hans Freyer: The Quest for Collective Meaning,” Counter-Currents Publishing, 22 February 2013, <http://www.counter-currents.com/2013/02/hans-freyer-the-quest-for-collective-meaning/>.

[13] See Jerry Z. Muller, The Other God That Failed: Hans Freyer and the Deradicalization of German Conservatism (Princeton: Princeton University Press, 1987), pp. 78-79, 120-121.

[14] Ibid., p. 335.

[15] Ibid., p. 79.

[16] See Julius Evola, The Path of Cinnabar (London: Integral Tradition Publishing, 2009), pp. 203-204.

[17] See H.T. Hansen, “Julius Evola’s Political Endeavors,” in Julius Evola, Men Among the Ruins: Postwar Reflections of a Radical Traditionalist (Rochester: Inner Traditions, 2002), pp. 15-17.

[18] Evola, Path of Cinnabar, p. 204.

[19] Robert Steuckers, “Evola & Spengler”, Counter-Currents Publishing, 20 September 2010, <http://www.counter-currents.com/2010/09/evola-spengler/> .

[20] Ibid.

[21] In a description that applies as much to the New Right as to the Eurasianists, Alexander Dugin wrote of a vision in which “the formal opposition between tradition and modernity is removed… the realities superseded by the period of Enlightenment obtain a legitimate place – these are religion, ethnos, empire, cult, legend, etc. In the same time, a technological breakthrough, economical development, social fairness, labour liberation, etc. are taken from the Modern” (See Alexander Dugin, “Multipolarism as an Open Project,” Journal of Eurasian Affairs Vol. 1, No. 1 (September 2013), pp. 12-13).

[22] Alain de Benoist, “Oswald Spengler,” Elementos: Revista de Metapolítica para una Civilización Europea No. 10 (15 April 2011), p. 13.<http://issuu.com/sebastianjlorenz/docs/elementos_n__10>.

[23] Pierre Krebs, Fighting for the Essence (London: Arktos, 2012), p. 34.

[24] Sebastian J. Lorenz, “El Decadentismo Occidental, desde la Konservative Revolution a la Nouvelle Droite,”Elementos No. 10, p. 5.

16/01/2015

Aleksandr Dugin - Tradição e Islã

por Aleksandr Dugin



1 - O valor do Islã

No mundo atual, o Islã é a religião mundial que resiste mais ativamente às forças da globalização. Isso faz com que o fator islâmico seja de suma importância para a frente do tradicionalismo. Nessa guerra com o Islã, os EUA e o ideólogo do "Fim da História" Francis Fukuyama, inclusive trataram de introduzir o termo "islamofascismo" para desacreditar a fé. Enquanto império, os EUA tendem a designar o Islã como o novo inimigo número um. Agora é quase uma posição oficial dos EUA, enquanto que com Bush era meramente algo formal. E por conseguinte, o Islã deveria ser tratado como um campo de batalha prioritário contra o imperialismo norte-americano, o mundo moderno e pós-moderno e a globalização. Isso determina o valor e a importância do Islã.

2 - O Islã é diverso

Considerar o Islã como algo unificado e coerente, como algo homogêneo, é uma ilusão ou um "conceito vazio". Este conceito se encontra em três casos: nas massas ignorantes (que se equivocam praticamente sempre, já que o tópico é incompatível com a verdade); na propaganda dos centros mundiais de poder (que o utilizam com fins políticos específicos); na boca dos supostos teóricos do "Islã puro" (salafistas, wahhabis, etc), às vezes chamado convencionalmente "fundamentalismo islâmico", "integrismo". Os dois primeiros casos são claros. O terceiro caso é uma inovação aperfeiçoada tendente a tomar o lugar do Islã existente (o Islã tradicional) como confissão religiosa, com o pretexto de um "retorno às raízes". Algo similar é levado a cabo pelos protestantes, propondo voltar ao "verdadeiro" cristianismo das origens, mas criando algo completamente novo que pouco tem a ver com o cristianismo. O "Islã puro" está próximo disso.

3 - Temos que analisar o Islã fora dos "mitos", tal e como é, em sua diversidade.

Isso deveria lançar luz sobre os aspectos teológicos, históricos, geopolíticos, étnicos de cada uma de suas escolas. Essa é uma tarefa gigantesca, sem a qual não podemos falar a sério sobre o Islã. A principal linha divisória se encontra entre os sunitas e os xiitas.

4 - Os xiitas

É evidente que a minoria xiita é um tema completamente distinto - metafísica, geopolítica e etnicamente. Em geral, o xiismo (e todos os ramos duodecimanos e septanarios heterodoxos, e especialmente o sufismo ishraq e iraniano) é muito similar ao tradicionalismo. Não possui dimensão universalista e permite grandes diferenças. Particularmente importante é seu sentido messiânico (o Mahdi), porque dessa maneira é mais fácil encontrar um terreno comum com a compreensão tradicionalista da natureza do mundo moderno e pós-moderno como é o "descobrimento do Ovo Cósmico" desde o exterior e como uma "grande paródia".

5 - Os sunitas: Islã tradicional e salafismo

A maioria sunita pode se dividir em vários fatores: permitindo o sufismo e não permitindo o wahhabismo (ao estilo do wahhabismo hanbalita propriamente dito).

6 - At-tasawwuf

Aquelas escolas sunitas que são tolerantes com o esoterismo e que tem, assim, uma dimensão na qual construir uma relação com o enfoque tradicionalista. O mundo mesmo do sufismo é muito vasto. Muitas tarîqah disputam entre si. Algumas acabam fazendo proselitismo e se unindo à Nova Era. Outras estão fechadas e quase se convertem em seitas étnicas folclóricas. As mais interessantes seguem o At-tassawwuf, que estão enraizadas em suas tradições, são ortodoxas, mas possuem uma perspectiva ampla sobre a realidade do mundo moderno, em seus aspectos sociológicos, geopolíticos, axiológicos e econômicos. Essas são poucas, mas são extremamente importantes. O entorno do At-tassawwuf é vasto como um todo. Um texto de orientação seria manifestamente necessário, ressaltando os valores radicais e incompatíveis da tarîqah com a modernidade e a pós-modernidade, assim como descrevendo a estratégia de comportamento geral (sem entrar em detalhes) de um sufi para o "fim do mundo". Os requisitos prévios para isso são numerosos. Mas tal material ou seu autor estão ausentes.

7 - O Islã Tradicional como um todo

Não há guia intelectual para os "últimos dias" no contexto do Islã Tradicional usual. Isso é compreensível, já que ele não apresenta qualquer unidade conceitual. O Islã Tradicional está presente, representa a grande maioria dos muçulmanos modernos, mas não existe uma orientação escatológica geral para a Ummah global. Tudo o que se encontra depois da prova inicial, é uma seita: o salafismo. Isso não surpreende: a escatologia se concentra nas seitas, e os salafistas, em geral, presumem ser a Ummah. Não obstante, o sentido escatológico, anti-global, anti-americano, anti-moderno e anti-pós-moderno está bastante desenvolvido entre os muçulmanos. Seria desejável ver aparecer uma publicação periódica que poderia se chamar "Islã Tradicional", e que serviria de plataforma para apresentar as posições das variedades particulares de comunidades islâmicas.

8 - Salafismo e o projeto salafista global

O salafismo, o "Islã Puro" está na frente da luta política no setor muçulmano do mundo moderno. Isso é um fato e não se pode negar. Aqui é onde encontramos a estratégia mais clara e simples, o pensamento global, os fins bem definidos: o estabelecimento do Estado islâmico mundial, a imposição da Sharia, a organização da sociedade segundo os princípios islâmicos em escala global, a doutrina da "casa da guerra" (Dar al-Harb) ali onde não existe uma "casa do Islã" (Dar al-Islam), etc. É óbvio que nesse programa há coisas aceitáveis e coisas inaceitáveis para o tradicionalismo. Aceitável é a luta contra o inimigo comum; inaceitável como um todo, porém, dada a alternativa proposta. De fato, este "projeto islâmico" pode ser chamado mais precisamente de "projeto salafista". Sua metafísica não é neutra, ela é construída sobre o rechaço do esotérico e do tradicionalismo, que são definidos aqui como o shirk, um desvio do "Islã puro". As raízes do conflito remontam aos mutazilitas e os opositores dos filósofos e dos sufistas. O "projeto salafista" é radicalmente anti-xiita, anti-sufi, e anti-tradicional. E isso não é uma característica distintiva dos salafistas individualmente, senão a metafísica obrigatória de todo esse movimento. Essa ambiguidade se reflete geopoliticamente nas estreitas relações entre o salafismo (em particular, Bin Laden e Al Qaeda), Brzezinski e a CIA durante a guerra do Afeganistão, no fato de que os americanos tem sempre o serviço dos salafistas, dando a eles a possibilidade de interferir nos assuntos soberanos dos países que tentam resistir aos EUA (Iraque, Síria, Líbia, mais o salafismo anti-russo no norte do Cáucaso), mas por outra parte também são salafistas os que encontramos ativos na anti-globalização atacando forças americanas. Essa ambiguidade deveria ser conceitualizada dando-se voltas constantemente para favorecer esse diálogo, para explicar todos os aspectos do conflito. Na batalha global contra o Dajjal - qual é o papel do salafismo? Deixamos essa pergunta aberta.

9 - O Islã na rússia

Posição, papel e lugar do Islã na Rússia. Devemos examinar as posições escatológicas e tradicionalistas. Para isso devemos aplicar seriamente todas as teses prévias à situação russa. O Islã é parte do espaço russo e ali se desenvolveu ao longo de séculos. Mas a Rússia não se tornou entrincheirada nas posições ocidentais, globalização, liberalismo, pós-modernismo. A posição das autoridades é evasiva e pode ser interpretada de diferentes manerias. As forças do Dajjal são fáceis de se especular aqui. Apontando para o aspecto liberal e globalista da Rússia eles jogam contra os muçulmanos com isso, mas ao mesmo tempo designam os muçulmanos russos - como "migrantes", "imigrantes", etc.  É uma estratégia para debilitar o inimigo potencial do Ocidente. Temos que trabalhar para opôr a eles uma aliançar escatológica dos muçulmanos e dos cristãos ortodoxos (em toda a Rússia) contra os EUA, o liberalismo ocidental e a modernização. Este é o ponto de contato mais sólido com um Islã tradicional russo; não é todavia um fato, mas teoricamente é a direção correta para este diálogo. No campo intelectual, inclusive ainda mais pelas semelhanças neoplatônicas. E ao nível externo isso nos leva a uma oposição conjunta ao Ocidente, ao liberalismo e à pós-modernidade. Mas aqui o Islã tradicional é usualmente passivo e limitado a fórmulas diplomáticas ao invés de propôr uma estratégia comum. Os aspectos "modernistas" pró-ocidentais e liberais do poder russo, a corrupção e a decadência da sociedade, das tradições e dos costumes, nos horrorizam a nós e aos muçulmanos, devemos lutar contra esses problemas com eles, lutar lado a lado e não uns contra os outros. Os principais problemas surgem com o salafismo. Desempenha o papel de "espantalho" para desacreditar o Islã como um todo, e seus projetos radicais exacerbam o conflito entre os muçulmanos de tendência escatológica e as forças de tendência similar de outras religiões, ou simplesmente opositoras instintivas da globalização. Não há espaço aqui para um diálogo significativo e estimulante.

10 - Resumo

O Islã e a tradição. O Islã está diretamente conectado à Tradição. É um fato indiscutível. E este fato deve ser reconhecido pelos tradicionalistas. O Islã está ativo e é favorável ao retorno a uma sociedade tradicional. Isso deve ser apoiado. Mas o Islã não representa sozinho a Tradição. A Tradição pode ser não-islâmica. Se os muçulmanos aceitarem isso e aceitarem os termos da multipolaridade, então um diálogo ativo e uma cooperação estreita, inclusive no âmbito militar, devem ser alentados para fazer oposição ao mundo pós-moderno e ao Anticristo. Se nos confrontamos a uma versão protestante contemporânea inovadora e comprometida com o universalismo e o exclusivismo, sob a máscara da defesa do "Islã puro", será necessário fazer um esforço prudente e sério para desatar este nó geopolítico e metafísico, para encaminhar a situação de uma maneira ou outra. A islamofobia é um mal, mas também pode ser um mal a atividade em favor da "islamização" que se apresenta sob a bandeira do "Islã puro". Cada um deveria seguir sua tradição. Se não o conseguimos, então a culpa deve ser posta sobre nós, não sobre a Tradição. A um nível puramente individual a escolha é possível, mas ver russos se converterem em massa ao Islã me repugna, porque buscam o poder fora de si mesmos e de sua tradição e são portanto enfermos, débeis e covardes.




12/01/2015

Jay Dyer - Manipulando o Terror

por Jay Dyer

No filme de 1971 The French Connection, o detetive policial nova-iorquino "Popeye" Doyle (Gene Hackman) revela uma operação de tráfico de drogas envolvendo a importação de milhões de dólares em heroína por um cartel francês que planejava usar uma personalidade midiática como cobertura involuntária.

Essa semana, nós ficamos chocados ao saber que a publicação satírica francesa Charlie Hebdo havia sido atacada por terroristas, com a Al Qaeda assumindo responsabilidade pelo assassinato de 12 membros da equipe da revista e convidados. Ainda que seja tentador ficar preso em detalhes situacionais "fluidos", nós devemos sempre relembrar padrões similares de eventos desse tipo no passado recente que servirão para informar o contexto maior desse novo evento na eterna "guerra ao terror".

Naturalmente, a primeira referência histórica que vem à mente é a Gladio, a infame rede da OTAN na Europa da Guerra Fria que se utilizou de ataques terroristas e tiroteios em locais públicos (entre outras coisas) para depois responsabilizar grupos socialistas. A Gladio assim representa o lado supostamente "conservador" das operações dialéticas contra a suposta esquerda. O incidente de Aldo Moro na Itália, por exemplo, envolveu um assassinato ensaiado de um ministro socialista por uma frente marxista operada pela OTAN. Operações da OTAN/Gladio jamais cessaram, conforme vemos os mesmos padrões presentes em falsas bandeiras mais recentes.



O serviço de inteligência francês, DGSE, trabalha de forma bem próxima com a OTAN e outras agências de inteligência ocidentais, e ao longo dos últimos anos ajudou no treinamento de subprodutos da Al Qaeda na tentativa de derrubar o líder sírio Bashar Al Assad. O "Exército Sírio Livre" notoriamente tem sido armado e financiado pelas elites atlantistas desde 2012, quando o CFR pediu mais presença da Al Qaeda no ESL, a 2013, quando vimos o senador John McCain e outros se encontrando com líderes da Al Qaeda rebatizada. Conforme olhamos para eventos passados associados ao terror franco-europeu, as imagens convergem.

Em 1995, Rachid Ramda, membro de organizações islâmicas radicais previsivelmente chamadas "Frente de Salvação Islâmica" e "Grupo Armado Islâmico", explodiu uma bomba no metrô francês RER, matando oito. Segundo uma entrevista com o Liberacion, Ramda descreveu seu envolvimento passado com ONGs ocidentais e a Médicos Sem Fronteiras - ambas coberturas clássicas de operações de inteligência, lançando dúvidas sobre a narrativa oficial de Ramda como o típico palco fundamentalista para tantas histórias midiáticas de terror. Esse evento relembra as participações em ONGs de supostas vítimas em vídeos do ISIS, bem como de Tamerlan Tsarnaev.

Em 2004, vimos um fiasco midiático similar com a provocação agitprop das caricaturas de Maomé do cineasta holandês Theo van Gogh, que levaram a sua morte em retaliação. Um violento confronto com uma célula terrorista em Haia se seguiu. Então, de 2005 a 2010 vimos jornais dinamarqueses criarem um escândalo novelesco com inúmeras zombarias de Maomé no jornal Jyllands-Posten. Também somos lembrados da associação dúbia do filme Inocência dos Muçulmanos ao incidente de Benghazi, curiosamente ocorrendo no aniversário do 11 de Setembro em 2012. O ex-operativo da CIA Claire Lopez relatou em outubro de 2012 vários detalhes suspeitos cercando Benghazi sugerindo uma falsa bandeira, tais como transferências de armas para a Al Qaeda na Líbia, bem como a segurança do local sendo terceirizado para a Blue Mountain, um grupo ligado à Irmandade Muçulmana.

Os ataques de ontem possuem notáveis semelhanças ao ataque de Anders Breivik em 2011, que supostamente envolveu um "direitista" orquestrando o massacre terrorista na Noruega. Como costuma ser o caso, porém, Breivik tinha inúmeros laços com operações da inteligência ocidental, e afirmou ser um "templário", dando indícios de envolvimento maçônico. Breivik também vem à mente graças às conexões curiosas de François Hollande com o Grande Oriente da França, uma versão atéia, socialista e de extrema-esquerda da Maçonaria existindo na França desde o tempo dos jacobinos e da Revolução Francesa. Várias figuras do séquito de Hollande, como Manuel Valls, são membros do Clube Bilderberg.



Como os jihadistas, Breivik também havia pré-produzido um "manifesto" que logo apareceu online, levando a várias especulações sobre seus elementos notavelmente plagiaristicos de manifestos prévios escritos por "malucos solitários", tal como a vítima de experiências da MK Ultra, o "Unabomber" Ted Kaczynski. Breivik parecia ser uma euro-versão "direitista" do bode expiatório islâmico radical, enquanto acima desses idiotas úteis estão agências de inteligência e sociedades secretas, elas próprias subservientes a elites internacionais como os Bilderberg e os bancos.

O que começa a emergir é um padrão consistente de serviços de segurança interligados e interconectados no nível do "evento terrorista", bem como seus recursos - tudo para servir à mesma elite empoleirada no topo. Quando consideramos a inteligência francesa, as digitais não são diferentes, na medida em que a DGSE possui uma longa história de falsas bandeiras e negociações sujas junto de suas contrapartes na OTAN. A França ajudou a treinar rebeldes ligados à Al Qaeda junto das forças dos EUA e da Grã-Bretanha na Jordânia, há muito um Estado-marionete da CIA. Armas e piratas do deserto estão em constante oferta para as agências de inteligência do Ocidente que precisem de distrações ou desejem incrementar o teatro de segurança. A França também desempenhou um papel no intento falho de falsa bandeira na Turquia em março de 2014, objetivando culpar novamente a Síria e Assad, e por extensão, antagonizar ainda mais a Rússia.

A inteligência francesa também parece ter tido algum envolvimento no assassinato de Diana, segundo Gordon Thomas, que afirma em Gideon's Spies que o motorista/guarda-costas Henri Paul foi manipulado pelo Mossad para espionar Diana, mas ela finalmente encontraria seu fim em circunstâncias questionáveis que levavam ao MI6 e aos serviços franceses (Gideon's Spies, pgs. 1-25). É sabido que o MI6 estava "na cidade" e que soldados da SAS podem ter sido responsáveis.

Similarmente, o ataque em Ottawa em 2014 também possui vários indícios de falsa bandeira, nos levando a imaginar - com tantos ataques ultimamente que parecem evocar padrões similares, conforme emergem detalhes do incidente do Charlie Hebdo, nós provavelmente veremos as mesmas conexões aparecendo. Não nos esqueçamos também do cerco de Toulouse em 2012 e nos assassinatos na sinagoga que envolveram outro conhecido jihadista, Mohammed Merah. Merah teve permissão de ser bastante ativo ainda enquanto portava um currículo bastante pesado, assim como o "sheikh louco" de Sydney.



Já há elementos questionáveis nos supostos vídeos sendo exibidos pela mídia, desde o homem no topo do prédio usando colete à prova de balas enquanto o ataque ocorria supostamente ao vivo na rua, à notável ausência de transeuntes nas ruas em plena luz do dia. Também há discrepâncias em outros vídeos relativos ao ataque e à balística dos tiros disparados. Como o 21st Century Wire notou, o próprio Charlie Hebdo parece ter publicado antecipadamente o que aconteceria, sugerindo influência de serviços de inteligência. Os terroristas também parecem ter conhecido detalhes do lugar, a que horas o encontro semanal era, e como entrar no prédio, bem como falavam francês fluente e demonstravam treinamento militar ocidental, o que é estranho para a célula "Al Qaeda no Iêmen" que a mídia já culpou como vilã. Para coroar isso tudo, a França lançou novos exercícios anti-terrorismo, e nesse sentido, o treinamento familiar como motivo de acobertamento pode estar presente.

O euroterrorismo, particularmente eventos tangencialmente conectados à França, porta todos os mesmos padrões das operações de inteligência atlantistas que tem ocorrido desde a Guerra Fria e a Gladio. Conforme novos detalhes emergem, uma imagem mais clara pode ser pintada sobre o cerco, mas nós podemos esperar todos os mesmos vilões e elenco de personagens que entram em cena no show de variedades que é a guerra global ao terror. O plano de "estratégia de tensão" da elite neocon objetiva um "choque de civilizações" entre as nações "judaico-cristãs" pós-modernas e a civilização islâmica - para desestabilizar e refazer o Oriente Médio na longa marcha fabiana rumo ao governo tecnocrático global.

10/01/2015

Nicolas Gauthier - Entrevista com Alain de Benoist sobre o atentado ao Charlie Hebdo

por Nicolas Gauthier



Mais além da indigmação legítima sobre o massacre perpetrado na sede do Charlie, que lições se pode extrair desse acontecimento? É preciso ver, como fizeram alguns meios, a prova de que uma "guerra total" foi declarada entre o Islã e a Cristandade, entre Oriente e Ocidente?

A forma abominável como foram massacrados os colaboradores do Charlie Hebdo nos comoveu, naturalmente. E o que resulta mais difícil quando a emoção invade tudo, é conservar a razão. E isso hoje é o mais necessário. Impor uma distância interior que permita analisar o acontecimento e extrair lições. Frente a quê nos encontramos? Frente a uma nova forma de terrorismo, inaugurada na França com os casos de Haled Kelkal e Mohammed Merah. Se distinguem ondas de terrorismo precedentes (os atentados do 11 de Setembro ou o atentado de Madri), que eram concebidas e postas em marcha a partir do estrangeiro por grandes redes internacionais organizadas.

Aqui, estamos diante de atentados concebidos na França por indivíduos que foram se radicalizando de maneira mais ou menos autônoma. Passaram progressivamente da delinquência ao jihadismo, mas não raro se ancoraram no jihadismo. São de um grande sangue frio, sabem utilizar armas e são perfeitamente indiferentes à vida dos outros. Ao mesmo tempo, são aficionados, como os irmãos Kouachi que decidem dizimar uma redação "para vingar o profeta", mas começam por se equivocar de direção, deixam pistas por todas as partes, não preveem nenhuma estratégia de retirada e esquecem carteiras de identidade no carro que acabam de abandonar. Aficionados imprevisíveis, o que os torna ainda mais perigosos. 

É preciso estar atento ao contágio mimético. A mesma lógica mimética que suscitou a comunhão emocional das concentrações espontâneas em favor do Charlie Hebdo não faltarão emuladores de Merah, dos irmãos Kouachi ou de Amedy Coulibaly. Imaginem a histeria social que poderia provocar a repetição a breves intervalos de atentados tais como o que acabamos de presenciar. Se viram coisas similares no passado. A isso se chama "estratégia de tensão".

É preciso evidentemente fazer a guerra aos que nos fazem guerra, e fazê-la com todos os meios necessários. Mas falar em "guerra total" não quer dizer grande coisa. Os jihadistas (ou os lançadores de fatwas) são tão representativos do Islã quando o Ku Klux Klan é representativo da Cristandade. Não são os jihadistas, senão os ocidentais que agitaram o espectro do "choque de civilizações" que empregaram para desestabilizar todo o Oriente Médio e eliminar todos os Chefes de Estado árabe-muçulmanos que, de Saddam Hussein a Gaddafi, haviam erguido barreiras contra o islamismo radical. A necessidade de lutar contra as consequências imediatas não deve fazer esquecer a reflexão sobre as causas primeiras.

Não é a primeira vez que uma revista é atacada de forma violenta. Recordamos especialmente os atentados contra o Minute ou o Le Choc du Mois, felizmente sem vítimas a lamentar. Não obstante, nessas ocasiões existiu menos empatia com essas ações que poderiam ser mortais. Dois pesos, duas medidas?

Digamos que se, ao invés de empreender contra a redação do Charlie Hebdo, os terroristas tivessem investido contra a revista Valeurs Actuelles, é muito provável que as reações não teriam sido as mesmas. Não teríamos visto florescer os "Eu sou Valeurs" como vimos florescer o "Eu sou Charlie". A classe política governante não teria falado certamente em "união nacional" (tema mistificador por excelência, por outra parte, pois uma tal "união" beneficia sempre aos que detém o poder e querem se beneficiar de um consenso). Contrariamente a seu predecessor Hara-Kiri, a Charlie Hebdo, revista liberal-libertária, se havia convertido em um dos órgãos da ideologia dominante. Essa sabe reconhecer os seus.

Nos é dito de maneira unânime que a Charlie Hebdo havia feito da liberdade de expressão seu cavalo de batalha. Mas e quanto a suas campanhas de delação que teriam levado à demissão de Richard Millet do comitê de leitura da Editora Gallimard, à demissão de Fabrice Le Quintrec da France Inter, ou de Robert Ménard e Éric Zemmour da Télé? A liberdade de expressão pode ter limites?

Basta de hipocrisia. Em 26 de abril de 1999, os dirigentes do Charlie Hebdo levaram ao Ministério do Interior 173.700 assinaturas pedindo a proibição do Front National. Em matéria de defesa da liberdade de expressão, se poderia fazer melhor! Há apenas umas semanas, Manuel Valls declarava que "o livro de Zemmour não merece ser lido", enquanto que outro ministro pedia sem a menor vergonha que "os estúdios de TV e as colunas de jornais deixem de albergar tais posições". E não falemos da própria questão do Dieudonné. Dito isso, sejamos justos: entre os que celebram a liberdade de expressão quando se trata de Zemmour, há desgraçadamente muitos poucos que estariam disposto a reclamá-la para seus adversários. Porém, "a liberdade é sempre a liberdade daquele que pensa de outra maneira" (Rosa de Luxemburgo), o que quer dizer que não tem mérito defendê-la mais que quando se esteja disposto a que ela também beneficie àqueles que se execra. Mas isso é precisamente o que rechaça a ideologia dominante, compreendida nos EUA, onde o primeiro mandamento permite a cada um dizer ou escrever o que queira, mas onde as opiniões inconformistas são ainda mais marginalizadas do que na França. Assim como o direito ao trabalho nunca cria um posto de trabalho, o direito a falar não garante a possibilidade de ser ouvido. 

09/01/2015

Christopher Pankhurst - "Je Ne Suis Pas Charlie"

por Christopher Pankhurst



Assim como praticamente todo mundo que está comentando sobre o massacre no Charlie Hebdo eu não sabia praticamente nada sobre essa publicação salvo pela publicidade que ela recebeu subsequentemente. Do que eu pude ver ela parecer se especializar em charges satíricas de uma variedade grosseira e não muito engraçada. Apesar do fato de que eu me oporia à maioria de suas perspectivas editoriais eu ainda acho que o que aconteceu no dia 7 de janeiro em Paris é bastante triste. Mas então já havia alguma coisa triste sobre uma revista publicada por esquerdistas idosos que se percebiam como parte da vanguarda do radicalismo político.

Outro cartunista do sistema com ilusões similares de um status de dissidente é Steve Bell do The Guardian. Sua resposta ao massacre foi desenhar os assassinos vestindo roupas bobas e perguntando, "Por que os idiotas ainda riem de nós?". Ninguém está rindo, Steve. Eu suponho que isso possa provocar uns risos de uma criança de cinco anos que ainda ache palhaços engraçados, mas o fato é que não há nada especialmente digno ou elogiável sobre esse tipo de caricatura em particular. Se ele deixa de ser engraçado, então começa a ser um exercício em uma triste frustração.

Talvez eu não esteja entendendo muito bem as coisas. Eu até gosto de Calvin & Hobbes, e minha exposição enquanto criança à obra de Charles Schultz me deu uma profundidade de compreensão filosófica que eu jamais fui capaz de recapturar quando adulto. Desenhos que escarrancham o vácuo entre a inocência e a experiência podem evocar um senso blakeano do paraíso perdido da infância, e momentaneamente fornecer alívio do stress da vida quotidiana. Os cartoons do Charlie Hebdo, em contraste, parecem incorporar os piores aspectos da infância, sendo pueris, ofensivos e ressentidos. 

É claro, muitos levantarão a objeção de que meu gosto pessoal em cartoons é irrelevante; que o importante é que devemos todos nos solidarizar com o Charlie Hebdo diante desse ataque brutal a nossas liberdades. Mas eu considero essa posição como profundamente falha. Primeiramente, eu questionaria a natureza da "liberdade" que está sendo defendida. Como outros já apontaram, não há absolutamente nenhuma liberdade de expressão na Europa para aqueles que querem dizer algo radicalmente divergente da narrativa multicultural dominante. Isso é verdadeiro tanto para muçulmanos quanto para a direita radical. A liberdade de expressão que aqueles que adotaram o slogan "Je suis Charlie" advogam é a liberdade para um milieu esquerdista amplo que apoia o multiculturalismo, e não para as opiniões dissidentes.

Em segundo lugar, eu discordo da visão de mundo proposta pelo Charlie Hebdo e sua gente. Alguns poderiam ver isso como sendo de pouca visão diante da verdadeiramente real ameaça islâmica. Mas eu diria que é a construção de falsas alianças que é de visão curta. A equipe do Charlie Hebdo e o milieu esquerdista geral jamais apoiaram ninguém da direita dissidente que tenha sido preso por suas opiniões e eles não começarão a apoiá-los agora. Essa não é uma discordância menor dentro de uma igreja ampla. Eu discordava da política do Charlie Hebdo antes de 7 de janeiro, e eu ainda discordo dela agora. Eu não vou alterar minha visão de mundo em resposta aos assassinatos.

Em terceiro lugar, eu não apoio a publicação de material criado deliberadamente para ofender as sensibilidades religiosas das pessoas. Talvez eu deva acrescentar rapidamente que eu não apoio a censura desse material, nem o assassinato dos responsáveis por ele. Mas também não posso aceitar a elevação desse tipo de material à epitome da civilização ocidental. Ouvindo nossos políticos falando dá até para pensar que a provocação crua da parte mais íntima da religião islâmica é a culminação para a qual a cultura ocidental tem evoluído por dois milênios. Vamos ignorar o fato de que Nick Griffin foi julgado, e completamente condenado por todos os políticos do sistema, por dizer coisas relativamente singelas em comparação ao que era publicado pelo Charlie Hebdo. A hipocrisia é notável, mas não muito surpreendente. Mas essa é a diferença entre a liberdade de expressão de esquerda e a liberdade de expressão de direita. Eles nunca farão uma distinção explícita, mas ela está lá para quem procurar por ela.

Alguns sugeriram que os cartunistas do Charlie Hebdo deveriam ser admirados por sua coragem e eu concordaria com isso. Suas ações parecem ter sido pensadas para provocar os muçulmanos e eles sabiam que esse era um caminho perigoso. Eles certamente mostraram coragem nesse sentido. Mas a qualidade mais admirável é a coragem combinada com sabedoria, e o Charlie Hebdo certamente carecia dessa qualidade. Seu senso de radicalismo consistia em um "foda-se" vazio dirigido a um sistema que já se havia degenerado logo após o 68. É o radicalismo da geração Monty Python, eternamente dando tapinhas nas próprias costas por uma iconoclastia que já estava ultrapassada há uns anos.

Os esquerdistas e multiculturalistas que estão agora tão determinados em proteger valores burgueses como a "liberdade de ofender" viraram suas costas à juventude trabalhadora da Europa há muito tempo atrás. Suas prioridades são claras. Ao invés de confrontarem a difícil tarefa de construir um futuro para sua juventude eles preferem jogar jogos tolos e irresponsáveis, lançando para todo lado a única citação de Voltaire que conhecem em um pique de narcisismo prepotente. Tudo isso tem menos que ver com idéias nobres de liberdade do que com a auto-indulgência de uma elite entediada. A juventude trabalhadora da Europa tem questões mais urgentes para lidar, como o caso de Rotherham (só para dar um exemplo) demonstrou.

Eu não posso me unir ao clamor de afirmar "je suis Charlie" porque eu penso que tal posição é esquizofrênica. Os apoiadores da liberdade de expressão apoiam esse direito para aqueles que defendem o multiculturalismo, mas eles apoiam prisão e censura para aqueles que se opõem. E em busca dessa falsa liberdade de expressão se espera que todos apoiemos a rudeza pueril dirigida àqueles cuja integração dentro do multiculturalismo está se provando a mais difícil. É como se os multiculturalistas na verdade, lá no fundo, não acreditassem na própria retórica, e desejassem solapar seu próprio projeto por meio de um ato petulante, ainda que reprimido, de provocação infantil. Isso é literalmente insano. Je ne suis pas Charlie. 

08/01/2015

Thierry Meyssan - Quem está por trás do atentado contra Charlie Hebdo?

por Thierry Meyssan



Em 7 de janeiro de 2015, um comando irrompe na sede parisiense do Charlie Hebdo e mata 12 pessoas. Outras 4 vítimas foram reportadas como estando em estado grave.

Nos vídeos se ouve os atacantes gritando "Allah Akbar!" e afirmar depois que "vingaram Maomé". Uma testemunha, a cartunista Coco, afirmou que os indivíduos diziam ser da Al-Qaeda. Isso bastou para que inúmeros franceses denunciam ao fato como um atentado islamista.

Mas essa hipótese é ilógica.

A missão do comando não coincide com a ideologia jihadista

Em efeito, os membros ou simpatizantes de grupos como a Irmandade Muçulmana, Al-Qaeda ou Emirado Islâmico não teriam se limitado a matar cartunistas ateus. Teriam começado destruindo os arquivos da publicação na presença das vítimas, como fizeram na totalidade das ações que perpetram no Magreb e no Levante. Para os jihadistas, o primordial é destruir os objetos que - segundo eles - ofendem a Deus, antes de castigar os "inimigos de Deus". 

E tampouco teriam se retirado de imediato, fugindo da polícia, sem completar sua missão. Pelo contrário, a teriam realizado até o fim ainda que isso custasse suas vidas.

Por outro lado, os vídeos e vários testemunhos mostram que os atacantes eram profissionais. Estão acostumados ao manejo de armas e só disparam quando é realmente necessário. Sua indumentária tampouco é a dos jihadistas senão mais exatamente a que caracteriza comandos militares.

Sua maneira de executar no chão um policial ferido, que não representava um perigo para eles, demonstra que sua missão não era "vingar Maomé" do humor não muito fino do Charlie Hebdo.

Objetivo da operação: favorecer o início de uma guerra civil

Os atacantes falam bem o idioma francês e é muito provável que sejam franceses, o que não justifica a conclusão de que seja tudo um incidente franco-francês. Pelo contrário, o fato de que se trata de profissionais nos obriga a separar estes executores dos que deram a ordem de realizar a operação. E nada demonstra que estes últimos sejam franceses.

É um reflexo normal, mas intelectualmente errôneo, acreditar que conhecemos nossos agressores no momento em que acabamos de sofrer a agressão. Isso é o mais lógico, tratando-se da criminalidade comum e corrente. Mas não é assim quando se trata de política internacional.

Quem deu as ordens que levaram à execução desse atentado sabia que estavam provocando uma ruptura entre franceses de religião muçulmana e os franceses não-muçulmanos. O semanário satírico francês Charlie Hebdo se havia especializado nas provocações anti-muçulmanas, das quais a maioria dos muçulmanos da França foram vítima direta ou indiretamente. Se bem os muçulmanos da França não deixaram certamente de condenar esse atentado, lhes será difícil sentir pelas vítimas tanta dor como os leitores da publicação. E não faltarão os que interpretem isso como uma forma de cumplicidade com os assassinos.

É por isso que, ao invés de considerar esse atentado extremamente sanguinário como uma vingança islamista contra o semanário que publicou na França as caricaturas sobre Maomé e dedicou reiteradamente seu primeiro plano a caricaturas anti-muçulmanas, seria mais lógico pensar que se trata do primeiro episódio de um processo tendente a criar uma situação de guerra civil.

A estratégia do "choque de civilizações" foi concebida em Tel-Aviv e Washington

A ideologia e estratégia da Irmandade Muçulmana, Al-Qaeda e Emirado Islâmico não prega provocar uma guerra civil no "Ocidente", senão pelo contrário, iniciar uma guerra civil no "Oriente" e separar a ambos mundos hermeticamente. Nem Sayyid Qutb, nem nenhum de seus sucessores convocaram a provocar enfrentamentos entre muçulmanos e não-muçulmanos no terreno destes.

Pelo contrário, quem formulou a estratégia do "choque de civilizações" foi Bernard Lewis e ele o fez a pedido do Conselho de Segurança Nacional dos EUA. Essa estratégia foi divulgada posteriormente por Samuel Huntington, apresentando-a não como uma estratégia de conquista senão como uma situação que podia chegar a se produzir. O objetivo era convencer aos povos dos países membros da OTAN de que era inevitável um enfrentamento, justificando assim o caráter preventivo do que seria a "guerra contra o terrorismo".

Não é em Cairo, em Riad nem em Cabul que se prega o "choque de civilizações", mas sim em Washington e em Tel-Aviv.

Os que deram a ordem que levou ao atentado contra o Charlie Hebdo não estavam interessados em agradar a jihadistas ou talibãs mas sim aos neoconservadores ou aos falcões liberais.

Não devemos esquecer os precedentes históricos

Temos que recordar que durante as últimas décadas temos visto os serviços especiais dos EUA e da OTAN:

-> Utilizar na França a população civil como "porquinhos da Índia" para experimentar os efeitos devastadores de certas drogas;

-> Respaldar às OAS para assassinar o presidente francês Charles De Gaulle;

-> Proceder à realização de atentados de "falsa bandeira" contra a população civil em vários países membro da OTAN.

Temos que recordar que, desde o desmembramento da Iugoslávia, o Estado-Maior americano experimentou e pôs em prática em vários países sua estratégia conhecida como "rinha de cães", que consiste em matar membros da comunidade majoritária e matar depois membros das minorias para conseguir que ambas as partes se acusem entre si e que cada uma delas creia que a outra está tentando exterminá-la. Foi assim que Washington provocou a guerra civil na Iugoslávia e, ultimamente, na Ucrânia.

Os franceses fariam bem em recordar igualmente que não foram eles que tomaram a iniciativa da luta contra os jihadistas que regressavam da Síria e do Iraque. De certo, nenhum desses indivíduos cometeu até agora nenhum atentado na França já que o caso de Mehdi Nemmouche não se pode catalogar como um fato perpetrado por um terrorista solitário senão por um agente encarregado de executar em Bruxelas 2 agentes do Mossad. Foi Washington que convocou, em 6 de fevereiro de 2014, os ministros do Interior da Alemanha, EUA, França (o senhor Valls enviou um representante), Itália, Polônia e Reino Unido para que inscrevessem o regresso dos jihadistas europeus como uma questão de segurança nacional. Foi apenas depois dessa reunião que a imprensa francesa abordou esse tema dado o fato de que as autoridades haviam começado a atuar.

Não sabemos quem ordenou esse ataque profissional contra o Charlie Hebdo mas sabemos sim que não devemos nos precipitar. Teríamos que ter em conta todas as hipóteses e admitir que, nesse momento, seu objetivo mais provável é nos dividir e que o mais provável é que quem deu as ordens esteja em Washington. 

02/01/2015

JJ Charlesworth - O Mundo Egocêntrico da Arte está matando a Arte

por JJ Charlesworth



O ano de 2014 oferece muitos candidatos para a questão/tema/fenômeno mais significativo do mundo da arte. Leilões recordistas? Certo. Artistas sendo pegos em controvérsias bastante complicadas sobre liberdade de expressão? Essa é boa. Ativismo político tomando conta da memesfera visual? Não estou reclamando. As tentativas cada vez mais desesperadas de galerias famosas de tentar manter a credibilidade de suas jovens estrelas superestimadas da pintura? Eu gosto de rir.

Mas às vezes, são os desenvolvimentos mais marginais que começam a te incomodar. E uma das tendências menos agradáveis, e para mim, ainda assim, uma das mais importantes de 2014 foi a ascensão da celebração vazia e barulhenta do artista-enquanto-ego. Ou talvez deva ser do ego-enquanto-artista. Eu não tenho certeza. É claro, o mundo da arte sempre esteve repleto de egos bastante imensos, então o que há de novo, certo? Porém 2014 parece ter sido o ano em que a obsessão com a expressão mais narcisista do indivíduo começou a tomar o palco central. Ela aponta para a fusão aparentemente inevitável da arte com uma nova forma de cultura da celebridade, uma em que a auto-expressão individual se tornou uma obsessão acima de todas as outras considerações.

Eu não estou falando aqui da imensidão de shows de ego de artistas em fim de carreira que povoaram o ano. Ainda que estes tenham continuado agressivos: o entronamento de Jeff Koons como "o artista mais importante, influente, popular e controverso da era pós-guerra" (segundo a publicidade histérica do Museu Whitney), a gravitas interminavelmente pomposa da retrospectiva de Anselm Kiefer na Royal Academy de Londres, as imensas ereções em aço do deus minimalista Richard Serra no deserto do Qatar, entre elas. No que concerne a unção de carreiras, os grandes museus ficaram felizes em ceder, desesperados como estão esses dias para atrair grandes multidões.

Porém se estivermos falando sobre o aspecto verdadeiramente contemporâneo da egomania do mundo da arte, o que realmente se destacou esse ano foi a figura do artista como canal para uma experiência supostamente profunda, pessoal, até terapêutica. Isso foi talvez melhor representado pela ascensão impossível de ser detida de Marina Abramovic, agora chamada de a "rainha da arte performática". Com seu show "512 Horas" na Galeria Serpentine de Londres seguido depois no ano por "Generator" na Galeria Sean Kelly de Nova Iorque, Abramovic escalou novas alturas na absurdidade participatória. Não é todo dia que pessoas ficam em filas de virar quarteirão para um show de arte sem reclamar. Mas tal é a reverência dada à versão estetizada de auto-ajuda New Age de Abramovic que não apenas elas fizeram fila, como fizeram fila pelo privilégio de ficarem em pé por horas, sem fazer nada, sob as ordens da guru Abramovic, com a Galeria Serpentine transformada em algum tipo de ashram hipster minimalista.

Talvez eu esteja ofendendo aqueles para quem meditação, conscientização e encontrar a própria quietude interior seja grande coisa. Bem, que pena. Eu nunca convido vocês para minhas festas, de qualquer maneira. A questão é que, abrigada na linguagem da autorrealização meditativa, de "esquecer o passado" e "viver o agora", a recente obra de Abramovic na verdade só cristaliza e reflete a tendência geral da cultura contemporânea: seu ideal narcisista de autorrealização pessoal, de experimentar o agora, de encontrar a si mesmo, e (uma vez tendo encontrando a si mesmo) de ser você mesmo. Em resumo, é a expressão cultural da Geração Y, da Geração Eu, como o acadêmico americano Jean Twenge batizou em seu livro epônimo de 2006.

A cultura da Geração Y é uma que privilegia a auto-expressão acima de qualquer outra coisa. Em 2014, isso parece ter levado muitas celebridades (admitidamente, geralmente celebridades americanas) a se expressarem pelo meio da arte - ou pelo menos pelo meio do mundo da arte. James Franco "retrabalhou" as primeiras obras de Cindy Sherman consigo mesmo no papel principal. Shia LaBoeuf deu seguimento a suas bizarrices performáticas no seu show #IAMSORRY (completo com sua afirmação bizarra de ter sido estuprado por uma visitante).

E quem poderia esquecer a reinvenção artística da ninfetinha pop Miley Cyrus, cuja decisão de fazer esculturas foi despertada pelos presentes que fãs lhe atiram nos concertos. Como Cyrus diz com precisão e sinceridade características, "Eu tinha um monte de lixo e porcarias, e assim ao invés de deixar que fosse lixo e porcaria, e transformei tudo em algo que me deixasse feliz". Cyrus declarou, "Eu sinto como se minha arte tivesse se tornado algum tipo de metáfora - um exemplo da minha vida". Ao que alguém poderia responder, "Certo, mas quem se importa?"O problema é que, ainda que seja fácil descartar as várias demonstrações inanas de autorrealização criativa do artista-celebridade, eles estão apenas cavalgando o movimento cultural do "eu", conforme ele atropela a vida quotidiana em uma onda irreversível de selfies e tweets.

É exagero ligar o transcendentalismo pseudo-espiritualista austero de Abramoci ao carnaval imbecil de arte de celebridade? Na verdade não. Eles podem parecer estar pólos à parte, mas estão baseados na mesma veneração da autorrealização individual pela auto-expressão no qual é o processo, não o produto, que importa. Todo mundo, apenas "sendo si mesmo" e afirmando que isso é arte. Também é por isso que shows de arte estão se tornando experiências. O único show que qualquer pessoa queria ver, quando eu fiz minha viagem anual à Art Basel nesse verão, foi a arte performática de Klaus Biesenbach e Hans Ulrich Obrist, "14 Salas". (Ela inclui, é claro, uma peça de Marina Abramovic). Sentir uma experiência, estar no agora, é a nova estética da Geração Y.

É por isso que, apesar daqueles artistas macho-alfa possam continuar se exibindo (Jeff Koons pelado apenas com luvas de couro na academia! Socorro!), eles estão ultrapassados, presos no passado. Isso é porque eles são de uma geração que ainda pensa que a arte deveria ser sobre algo que não seja eu, aqui, agora. Que a arte deveria ser sobre, digamos, apenas consumismo, ou sobre a história da Alemanha, ou mesmo apenas sobre imensos pedaços de aço enfiados em um deserto. Em outras palavras, sobre coisas sobre as quais você tenha que pensar, talvez discutir, discutir com os outros, discordar sobre - algo, que não seja inteiramente sobre você mesmo. Mas, por agora, entre Miley e Marina, 2014 começou a revelar o futuro da arte: o artista e a audiência, dando as mãos entre espelhos infinitos, uma mão livre para tirar um selfie. 

01/01/2015

Branko Malic - Leviatã e Bahamut - A Conspirologia Geopolítica de Aleksandr Dugin

por Branko Malic



Desde a perspectiva Tradicionalista, o consumidor absoluto é muito mais adequado para o avatar contra-iniciático, do que o soldado SS, e o posto de gasolina na beira da rodovia é um templo muito mais adequado do novo deus do que qualquer templo concebível de nação ou raça. Pois todos os consumidores podem ver a si mesmos como uma comunidade unificada enquanto ficam de pé na fila antes da caixa registradora do posto de gasolina, completamente idêntico a qualquer outro posto de gasolina na União Européia, sendo parte de uma rede de rodovias que isolam o passageiro e tornam toda paisagem identicamente irreconhecível. Em outras palavras, a contra-iniciação precisa oferecer às pessoas uma razão pela qual elas lucrarão se todas as diferenças forem abolidas, até que a única coisa que ainda as distinguem como irmãos e irmãs globais seja o discriminatório rótulo "senhoras/senhores" acima da porta do banheiro do posto de gasolina.

Por que a serpente é tão tímida?

A política da globalização oculta sua própria metafísica como se fosse uma bagagem incômoda. Para aqueles que percebem que o projeto da sociedade global é impossível sem um sistema econômico, político e religioso total, a única pergunta é: por que a serpente oculta suas pernas? É porque ela está envergonhada ou será porque sem elas ela rasteja mais rápido? Aleksandr Dugin, sociólogo, filósofo e teórico russo da geopolítica, cujo livro Conspirologia foi apresentado ao público croata pela Editora Eneagrama, inequivocamente escolheria a segunda alternativa. Mas antes que seguidores de David Icke procedam a lhe enviar vibrações positivas, Dugin não tem problema algum com a prisão de membros do coletivo de arte Voina, i.e. garotas da banda ad hoc Pussy Riot, após sua "oração punk" na Catedral de Moscou, denunciando sua performance como um ato subversivo em prol da metafísica rastejando da qual estamos falando. Por outro lado, o nacionalista croata pós-moderno que, ao ouvir isso, automaticamente decide acrescentar a Dugin um sinal de "mais" em seu livrinho de fã - um mais tão grande quanto aquelas imensas cruzes pseudo-católicas de concreto nas colinas da Dalmácia e Herzegovina - será obrigado a tremer sob o banho frio do discurso laudatório de Dugin sobre o psiquiatra-psicopata Radovan Karadzic em 2008.

Aleksandr Dugin não é o homem a simplificar as coisas, assim cautela na aproximação a sua obra deve ser proporcional à cautela que se exerce ao se aproximar às obras de praticantes e teóricos ocidentais da engenharia social, como Kissinger, Soros, Popper ou Luhmann. De fato, as ambições são similares - vitória na arena da geopolítica e a realização de uma perspectiva concreta e definitiva. Porém, em contraste a seus antípodas, Dugin não demonstra incentivo totalitário - ou ele o oculta bem, talvez até de si mesmo. Nesse sentido, à parte do fato de que ele é, contrariamente aos necromantes ocidentais, disposto a jogar um jogo de cartas abertas, nós podemos confiar que suas cartas não estão marcadas antecipadamente.

Pressuposições da Conspirologia

O livro que estamos analisando é uma das primeiras obras de Dugin e apenas nos apresenta parcialmente um vislumbre de suas idéias centrais, que depois o trouxeram às portas do Kremlin. Conspirologia, primeiro publicado em 1991, nos apresenta um autor erudito e meticuloso, interessado um problema às margens da academia, i.e., teorias da conspiração. Nesse sentido, ao apresentar a estrutura do livro, Dugin nota que a noção conspirológica de história e vida quotidiana é algo bem comum na mente pública, ainda que nunca se fale sobre ela publicamente. Isso apresenta ao pensador a tarefa da análise sociológica do fenômeno, nomeadamente a delineação de estruturas, formas e significados típicos que o tornam tão difundido e influente, ainda que ao mesmo tempo invisível para o mundo acadêmico. Se alguém assumir a tarefa logo perceberá que Dugin é uma fonte a ser reconhecida, porque a parte introdutória de Conspirologia demonstra bem o quão informado ele está. Ele traça a história dos conceitos conspirológicos pela exposição de seus defensores significativos, principalmente autores dos quais a audiência contemporânea de InfoWars jamais ouviram falar, ainda que tenham deixado uma marca importante na história das idéias em geral. O princípio de sua classificação e avaliação não é a verdade objetiva do que eles defendem, que Dugin toca apenas de passagem, mas a atividade do espírito humano que faz emergir suas idéias. É uma espécie de arquétipo conspirológico, uma idéia profundamente enraizada nas camadas inconscientes da humanidade, fornecendo a ela uma intuição esquiva, porém muito real, de que sob a superfície da história há uma direção e significado definidos. A enchente de teorias da conspiração está relacionada à erosão da cultura cristã tradicional, iniciada, segundo Dugin, na segunda metade do século XVIII, i.e., na era da penetração das idéias iluministas na realpolitik da Europa. Daí, Dugin denota as teorias da conspiração modernas e pós-modernas como as teorias da conspiração "humanas". Em acordo com o zeitgeist elas necessariamente tendem a sublimar o momento religioso e então projetá-lo nos feitos dos homens, grupos que continuamente laborar para a destruição da ordem mundial existente.

Nesse ponto, Dugin corretamente nota os padrões recorrentes: por exemplo, a idéia do assim chamado "complô maçônico" tem estado por aí por duzentos anos com variações mínimas e argumentos pró e contra idênticos, e ao mesmo tempo sem sinais de enfraquecer. Porém, o que permanece permanente em todas as formas mutáveis das teorias da conspiração está oculto para a maioria de seus criadores e defensores. Assim Dugin é obrigado a perguntar o seguinte: o que é que torna certas teorias da conspiração plausíveis, ainda que ao mesmo tempo contraditórias? Posto de forma simples, por que a mesma idéia soa diferente quando apresentada por diferentes homens; por que, por exemplo, a denunciação de Israel soa muito diferente quando pronunciada por um neonazista ou por alguém tão benigno quanto David Icke, se eles usam os mesmos - admitidamente, em ambas instâncias, superficiais - argumentos? Por que nós temos a sensação de que eles dizem coisas diferentes? Às vezes a mera qualificação de serem teóricos da conspiração pode ser suficiente para calar alguém, sem mencionar as acusações de antissemitismo e revisionismo histórico que hoje em dia são inescapáveis de qualquer coisa sobre o povo judeu for dita sem a devida reverência. Nesse sentido, a abordagem conspirológica da história é um negócio arriscado. Daí, Dugin chama os conspirologistas reais de "loucos da história" em honra aos "loucos da poesia", os simbolistas franceses. Essas são pessoas que objetivam extrair criativamente a verdade a partir dos eventos históricos, ejetando a si próprias na direção das margens da sociedade no processo, porque nas forças aparentemente opostas elas veem a atividade de um princípio único. A maioria delas erra o alvo porque elas nunca realmente param para perguntar, exatamente o que esse princípio realmente é. Porém, ninguém o erra inteiramente. A exposição verdadeira do princípio que dá origem às teorias da conspiração Dugin localiza nas obras de um homem que não foi nem conspirólogo nem historiador, mas um exilado contemplativo apolítico da história ocidental. O homem em questão foi o pensador francês René Guénon.

René Guénon e o Tradicionalismo

Do fundador informal do Tradicionalismo, Dugin pega emprestada a idéia de que a história é essencialmente um choque entre dois motivos subliminares e suas respectivas influências: iniciação e contra-iniciação. O primeiro termo denota movimentos do Espírito, de ser jogado no mundo e na história, a retornar à origem, o que Guénon chama de Tradição sacral, coração vivo das religiões reveladas. O outro termo denota um afundamento ainda maior no mundo e na história, uma fuga ainda maior da origem e, finalmente, a história moderna e sua virtualização pós-moderna. Enquanto a iniciação se apoia na metafísica que retrata o Espírito como a fundação do mundo, a contra-iniciação busca a origem apenas nos efeitos, formas materiais que são retratadas, mas também moldadas pela ciência moderna, empregada para ser uma função da metafísica oculta laborando para a redução do mundo e do conhecimento a medidas de materialismo. Mas é essencial ter em mente que o materialismo é meramente uma fase na evolução da contra-iniciação, transformando até mesmo o hoje em uma forma certa, ainda que não reconhecível, de espiritualidade pervertida. Guénon pressupõe que a contra-iniciação segue a iniciação como reflexo no espelho, portanto ela inverte todas as suas características: em seu coração não está uma crítica ou rejeição da metafísica. Pelo contrário, seu propósito é eclodir e gerar a contra-metafísica. Nomeadamente, a vida, desde a perspectiva da iniciação, é um processo de eterno retorno do efeito a sua origem, i.e., o despertar da causa para seu "de onde". A contra-iniciação, por outro lado, inverte essa posição religiosa primordial, mas ao fazê-lo, o toma não menos religiosamente: o efeito é sempre mais forte que a causa, assim, de forma a realizar absolutamente sua natureza, ele deve finalmente recriar a própria causa. Assim, na opinião de Guénon, o fim último da contra-iniciação seria o de inseminar o cosmo com o espírito falsificado. Obviamente, então, ele a compreende como sendo primariamente uma subversão da religião, sua falsificação histórica. Uma vez que o materialismo tenha cumprido seu propósito, a humanidade se deparará com um falso despertar que irá, pela lógica da contra-iniciação, se passar como uma difusão de matéria morta em uma paródia do Espírito, uma espécie de necromancia da matéria pela infusão de pseudo-inteligência. O sistema político que serve a tal propósito, i.e., demonstrando a aspiração de limpar os caminhos antes do advento da contra-iniciação pela destruição total de todas as diferenças e pela sistematização do mundo no sentido político, econômico e cultural, e, dessa forma, tornando-o totalmente transparente por seus princípios cognitivos, é na verdade seu sujeito histórico.

Contra-Iniciação e o Mundo de Hoje

Dugin sustenta que os conspirologistas usualmente erram o alvo porque eles são incapazes de reconhecer esse embate histórico, e são consequentemente lançados nas decisões de escolher os lados que estão sempre errados. Dessa forma alguns deles ficam presos em movimentos políticos radicais como o nazismo e o fascismo. É claro, a Tradição não é e de fato não pode se tornar, a criação da modernidade ou pós-modernidade, que o neopaganismo do nazismo era, de toda forma. Ademais, as filosofias políticas do fascismo - e especialmente a ideologia híbrida do nazismo - contém um forte momento pseudo-religioso que os torna tentativas violentas e mal sucedidas de criar um sistema político contra-iniciático; algo que a verdadeira política contra-iniciática realiza de uma maneira logicamente consequente. Nomeadamente, a contra-iniciação pode realizar seu objetivo apenas se ela for aceita voluntariamente e totalmente; ela tem que ser um sistema total, mas ela não deve estar ligada a uma única nação ou raça e suas conquistas militares, culturais e econômicas. Isso é assim porque seu verdadeiro fim é criar um único mundo, e de modo algum uma nação; um centro sem mais inimigos para desafiá-lo e um ideal que só pode ser realizado se abarcar os desejos de todos os homens. Nesse sentido, desde a perspectiva tradicionalista, o consumidor absoluto é muito mais adequado para o avatar contra-iniciático, do que o soldado da SS, e o posto de gasolina na rodovia é um templo muito mais apropriado do novo deus do que qualquer templo imaginável de nação ou raça. Pois todos os consumidores veem a si próprios como uma comunidade unificada enquanto ficam de pé na linha antes do caixa do posto de gasolina, completamente idêntico a todos os outros postos de gasolina na União Européia, sendo uma parte de uma rede de rodovias que isolam o passageiro e tornam toda paisagem identicamente irreconhecível. Em outras palavras, a contra-iniciação precisa oferecer às pessoas uma razão pela qual elas lucrarão se todas as diferenças forem abolidas, até que a única coisa que as distingue enquanto irmãos e irmãs globais seja um rótulo discriminatório "senhoras/senhores" sobre a porta do banheiro do posto de gasolina. O único sistema capaz de impôr todas as condições para a realização desse projeto ambicioso é a metafísica da globalização, às vezes imprecisamente chamado "neoliberalismo". Porém, Dugin acredita que ele possui uma origem geopolítica clara e distinta também - o choque entre metafísica geopolítica unipolar e multipolar ele subsume na impiedosa guerra de dois princípios políticos e espirituais: atlantismo e eurasianismo.

Geopolítica Sagrada

A elaboração do significado desses princípios levou Dugin para perto de personagens russos contemporâneos influentes. Muito de sua terminologia pode ser ouvida em Vladimir Putin ou Sergei Lavrov. Também pode ser afirmado que a política externa russa - na medida em que esse escritor possa destilar de várias fontes e mídias - está de fato agindo nas linhas dispostas pelas obras posteriores de Dugin.

Seja como for, os princípios geopolíticos, como explicados na Conspirologia, são idéias arcaicas, inconscientes ou sistemas de motivos e símbolos que movem os povos e civilizações em certas direções definidas. A primeira exposição sistemática - ainda que não esotérica, como encontramos em Dugin - foi dada pelo político britânico e fundador da geopolítica, Halford Mackinder. Dugin aceita sua terminologia, destilada pelas obras dos intérpretes russos e alemães de Mackinder. Os princípios do atlantismo e do eurasianismo se manifestam como um impulso geopolítico na direção das potências anglo-saxônicas, outrora lideradas pelo Império Britânico e agora pelos EUA, em oposição ao impulso na direção das potências continentais da Europa Central e do Leste. O denominador comum da política eurasiana é o objetivo de estabelecer a "grande terra", i.e. de forjar uma aliança de países cujas localizações, culturas e mores de ação política sejam dirigidas a partir de ou na direção da "ilha mundial" da Eurásia. O atlantismo, por outro lado, é um princípio unificador daquelas nações ligadas ao mar e pelo estabelecimento dos chamados "impérios marítimos". Se essa idéia parece extremamente simplificada e arcaica, então a mesma acusação serve para a política globalista pós-moderna, porque o tema da dominação da "ilha mundial" está nas próprias bases da política do "Novo Século Americano", como formulada, entre outros, pelo guru da geopolítica americana, Zbigniew Brzezinski. Não devemos, porém, esquecer que idéias pseudo-religiosas não são pvirilégio de movimentos políticos marginais. Simbolismo, retórica, e finalmente, os motivos de grandes impérios iluminados do Ocidente estão submersos nelas, o que é óbvio para qualquer um com olhos para ver, e a pressuposição implícita de Dugin de que certos motivos espirituais se encontram nas fundações de todas as forças opostas da política global é inteiramente plausível. Por outro lado, a doutrina de gerenciamento de mudanças da Corporação RAND e outros think-tanks e institutos é bem documentada como método de guerra psicológica ou cosmovisional (Weltanschauung Krieg), de baixos custos e sempre mantando as mãos do operador livres. Quando toda a complexidade do momento é tomada em consideração, se olharmos para a Ucrânia e o que ocorre lá, é patentemente óbvio que a técnica de incitação do caos ainda está sendo empregada. Admitidamente, se o rifle de assalto pode ser tranquilamente produzido na forma de um brinquedo de plástico e o movimento FEMEN promovido por meio da moda, isso não aponta para o fato de que tanto rifles de assalto como moças de seios pequenos são meros instrumentos dos jogos de guerra?

Mundo Unipolar e Multipolar

Dugin vê nossa era como a culminação do embate entre dois paradigmas geopolíticas: o princípio unipolar contra o princípio multipolar. A unipolaridade é uma tentativa de implementar o império global "liberal" criado pelas forças atlantistas e liderado pelos EUA. Em efeito, parece ser um processo de erradicação política, econômica e religiosa total de todas as diferenças espirituais, sociais e antropológicas entre os povos, e sua submissão ao mando da tecnocracia panóptica. O princípio multipolar, por outro lado, é um paradigma de retenção e fortalecimento das diferenças segundo a multiplicidade de matrizes civilizacionais. Porém, Dugin evita a armadilha de Huntington e afirma que a pluralidade de civilizações não implica necessariamente em seu choque. Ela pode levar a conflitos, mas ela também pode levar a diálogos e alianças, como tem sido ao longo da história. A pré-condição do mundo multipolar é a resistência bem sucedida à globalização, e especialmente a vitória na Weltanschauung Krieg que ameaça os valores fundamentais da sociedade dada e atrair a destruição da variedade de cosmovisões e modos de vida, interessantemente, sob a égide do multiculturalismo. Nesse sentido, Aleksandr Dugin é um ateísta político exemplar. Nomeadamente, ele parece considerar cada ação ou sistema simbólico criados por instituições globais inteiramente vazios de qualquer moralidade essencial. Os valores do multiculturalismo, igualdade de gênero e eliminação das diferenças sexuais pela matriz ideológica de casamentos homossexuais, são apenas meios para um fim nefasto; um projeto político inteiramente realista, ainda que bizarro. Exatamente o que este projeto deve ser, nós podemos observar simplesmente abrindo a janela. É um processo de desvaloração total da herança histórica de direitos civis: direito à privacidade, propriedade privada e, no coração de tudo, o direito a pensar. A novidade histórica da metafísica globalista está no fato de que ela insiste em ser livremente aceita pelos indivíduos. Porém, a crença nos deuses da política que, interessantemente, normalmente se segue à falta de crença no transcendente não é nada além de uma superstição.

O Tradicionalismo de Dugin

A influência de Aleksandr Dugin sobre a política externa russa é um objeto de especulação, majoritariamente no nível da fofoca. No Ocidente ele é às vezes chamado de novo Rasputin, provavelmente porque a inteligência dos moldadores de opiniões mainstream não parece ir mais longe que um reconhecimento de padrões (dica: a barba). Ainda que seja difícil crer que o estimado professor veja a si mesmo como "a maior máquina de amor da Rússia", é impossível ignorar que alguns dos movimentos da política externa russa são bastante concordantes com suas opiniões e afirmam muito do que ele fala. A vitória diplomática sobre o Ocidente durante as primeiras fases da crise síria não pode ser negada, e é difícil escapar do fato de que o termo reaganiano "Império do Mal" esteja perigosamente perto de denotar os próprios EUA. Porém, há um perigo em idealizar excessivamente o projeto liderado pela Federação Russa. A glorificação acrítica do poder ascendente da Rússia, ainda que compreensível, não nos deve fazer esquecer o famoso ditado sobre o "enigma embrulhado em segredo". Em outras palavras, ocidentais jamais devem se esquecer do fato de que eles não sabem e - como implicado pela lógica de Dugin - talvez não tenham como saber, o que ocorre por trás da face pétrea de Putin. Ademais, é questionável como se pode conciliar o misticismo militante evoliano com a sabedoria ascética de Guénon, o que Dugin aparentemente tenta fazer. É uma pena que o Ocidente seja mais ou menos ignorante do principal descendente espiritual de Guénon, o húngaro Bela Hamvas, um homem bem mais experiente em resistir do que exercer a força violenta, mas que não obstante quase sozinho manteve viva a chama da Tradição em toda a Europa Oriental. O que ele e Guénon foram capazes de fazer foi apontar o dedo e dizer: isto é Corrupção. Nada mais, nada menos. E isso em si já os torna revolucionários. A resistência do tipo que Dugin defende pode se provar não menos imoral que a agressão ocidental e dificilmente se pode reconciliar com a atitude religiosa do Tradicionalismo.

Devemos concluir que Aleksandr Dugin é um pensador relevante e sua obra é um ponto de referência para todos que vejam, ou pelo menos ouçam, algo rastejando perto de sua porta. Dugin diz claramente: nas flores plásticas da globalização, uma serpente se oculta. Mas se observarmos como ele, bem como a direita alternativa européia em geral, entrelaçam Tradicionalismo e realpolitik, a questão inevitável surge: é realmente possível curar a mordida da víbora com outra dose de veneno? Sem dúvidas, cada vez mais pessoas estão se tornando conscientes de que a história do século XX não era o que lhes foi dito. Os valores do Ocidente se provam mais e mais ameaçadores não apenas para as bases políticas, econômicas e biológicas, como também lógicas do ser humano enquanto tal. O niilismo está aí sem máscaras. Porém, se aliar com pensadores como Dugin exclusivamente por causa das insuficiências do Ocidente não é razoável. Pois ainda que suas cartas não estejam marcadas, não se pode ter certeza de que se sabe que jogo ele está jogando.