05/08/2011

Direitos Fundamentais e Arma de Fogo

por Celso Antônio Bandeira de Mello


1.

Em face da Lei Magna do País, o cidadão jamais poderá ser proibido de tentar defender sua  vida,  seu  patrimônio,  sua  honra,  sua  dignidade  ou  a incolumidade  física  de  sua  mulher  e  filhos  a  fim  de  impedir  que  sejam atemorizados, agredidos,  eventualmente vilipendiados e assassinados, desde que se valha de meios proporcionais aos utilizados por quem busque submetê- los a estes sofrimentos, humilhações ou eliminação de suas existências

A Constituição Brasileira, não autoriza a que seja legalmente qualificado como criminoso, e muito menos como sujeito eventual à pena de reclusão, o cidadão que tente defender a própria vida, o patrimônio, a honra, a dignidade ou a incolumidade física de sua mulher e filhos usando de meios proporcionais aos utilizados por quem busque inflingir-lhes estes sofrimentos, humilhações ou eliminação de suas existências ou então que simplesmente se aprovisione de tais meios, na  esperança  de  impedir  que  ele  ou  seus  familiares  sejam atemorizados, agredidos, e eventualmente vilipendiados.

Logo, é grosseiramente inconstitucional a lei que para eles concorra ou que abique direta ou indiretamente em tais resultados.

2.

Com efeito, a Constituição Brasileira, como não poderia deixar de ser, qualifica como bens de suma valia a vida, a honra, a segurança, a dignidade, a incolumidade física das pessoas, afirma-os protegidos e assegura o direito de propriedade. Logo, não se compatibilizará com disposições normativas que os coloquem em estado de indefensão.




Deveras, o art   declara  garantidos  a  todos  os  brasileiros  e  aos estrangeiros   residentes  no  País,  a  inviolabilidade  do  direito  à  vida,  à liberdade, à  igualdade, à  segurança e à propriedade”. O inciso X deste mesmo artigo nos afiança que são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra”.

O art.   da  Lei  Magna  aponta  em  seu  item  III,  como  um  dos fundamentos  da  República  Federativa  do  Brasil,  a  dignidade  da  pessoa humana”.

Até mesmo à sadia qualidade de vida” “todos têm direito”, nos termos do art. 225.  Que dizer, então, do  direito  do  cidadão    defender  a  mera subsistência  da  própria  vida  ou  a  de  sua  família,  maiormente  em  se considerando  que a Lei Máxima impõe ao Estado, à sociedade e a própria família, o dever de assegurar à criança e ao adolescente o direito à vida , à dignidade, ao respeito , consoante prevê o art. 227 ?

Registre-se, ainda, que, no art. da Constituição, a “segurança está expressamente categorizada como um dos direitos sociais.

De seu turno, o art. 144  dispõe :

A segurança pública, dever do Estado, direito e responsabilidade de todos, é   exercida  para  a  preservação  da  ordem  pública  e  da incolumidade das  pessoas e do patrimônio, através dos seguintes órgãos:

Aliás, no preâmbulo da Constituição se que os representantes do povo brasileiro, se reuniram em Assembléia Nacional Constituinte para instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança ....

3.

Por tudo quanto se anotou, é evidente e da mais solar evidência que o direito à  vida,  à  liberdade,  à  incolumidade  física,  à  dignidade,  à  honra,  à propriedade  e  à  segurança  constituem-se  em  bens  jurídicos  expressa  e reiteradamente assegurados na  Constituição, sendo, pois,     livre de qualquer dúvida ou entredúvida de que  perfazem um inalienável direito do cidadão o qual, por isto mesmo, não lhe pode ser subtraído por ninguém e muito menos pelo Estado.

Dessarte, ou o Estado oferece ao cidadão um padrão ao menos razoável de  segurança,  para  que  ele  possa  desfrutar  da  sensação  de  que  está medianamente  protegido contra assaltos, agressões e riscos de vida, ou, se não é capaz de fazê-lo, não pode pretender impedi-lo que disponha, por si próprio, daquele mínimo de meios necessários para que não se sinta inerme, exposto à sanha do banditismo sem qualquer possibilidade de salvação.

Vale dizer: se o Poder Público não oferece ao cidadão um mínimo de segurança, se não lhe garante, nem mesmo à luz do dia, a tranqüilidade de que ele e ou sua família, não serão, a qualquer momento, assaltados,seqüestrados, sujeitos a toda espécie de violências e humilhações, de fora parte o despojamento de  seus  bens, por obra de marginais instrumentados com armas de fogo, é óbvio e da mais solar obviedade que este mesmo Estado não tem direito algum de proibí-lo de tentar se defender, de se utilizar também ele de instrumental capaz de lhe conferir ao menos o conforto psicológico ou a mera esperança  de não se sentir desamparado de tudo e de todos.

Se, em tais circunstâncias, o Poder Público se abalançasse a despojá-lo de meios de defesa própria estaria atentando à força aberta contra os ditames constitucionais assecuratórios dos direitos à vida, à integridade física, a dignidade pessoal e à proteção do patrimônio.


4.

Ora bem. É fato público e notório que o Estado não tem conseguido oferecer  sequer  um  mínimo  de  tranqüilidade  e  segurança  aos  cidadãos. Ninguém  ignora  que  a  absoluta  incapacidade  estatal  de  oferecer o mais modesto padrão de segurança levou  os  abastados a blindarem os próprios automóveis,  fomentando o surgimento  de  uma  indústria  produtora  destes equipamentos. É sabido e ressabido que proliferam empresas de  segurança, para oferecer aos que dispõem de recursos para pagá-las, ora cortejos de veículos destinados a proteger-lhes as deslocações por automóvel, ora - o que é muitíssimo comum - veículos com seguranças circulando pelos bairros nobres e  hoje, até mesmo em bairros modestos, para buscar minimizar os riscos que se disseminaram por todos os cantos e mais duramente ainda entre os mais pobres.

Nos quarteirões residenciais de habitações unifamiliares, tal como nos edifícios de apartamentos, tornou-se praticamente generalizada a instalação de guaritas com porteiros em atitude de alerta perante os que se aproximam. De par com isto, aparelhos eletrônicos são instalados nos prédios para  detecção do que se passa na rua ou na intimidade deles.

É fato corrente o de que o cidadão que sai à noite é obrigado a assumir disposição anímica alerta e se circular por local ermo esta sempre mais ou menos atemorizado, mas sempre em atitude expectante. Os que possuem automóvel não se atrevem a andar com  os vidros abertos, não importando quão  grande  seja  o  calor.  Em horas  tardias,  mesmo  quem  tem  condução própria, se precisa deslocar-se a distâncias maiores, prefere recorrer a serviços de “taxi”, na convicção de que ali estará mais seguro ou pelo menos não estará inteiramente à mercê do banditismo.

5.

Todo este panorama, sobre  o  qual  é  desnecessário  insistir,  pois  os brasileiros  de  qualquer  condição  social, tanto  os  que  vivem  nas  grandes aglomerações  urbanas,  quanto,   hoje,  até  nas  cidades  do  interior  ou  na intimidade de propriedades rurais, sabem perfeitamente que o Estado não lhes dá proteção minimamente  bastante contra o desatado perigo de assaltos, de latrocínios, de seqüestros,  ou  contra  a  exposição  a  violências, torturas e humilhações muitas vezes inflingidas pelos marginais na intimidade do lar das vítimas.

Tocaria às raias da crueldade pretender que o cidadão deva sentir-se rigorosamente inerme, indefeso, entregue ao libito dos assaltantes, quer na rua, quer na intimidade da própria casa (suposto asilo inviolável do indivíduo), enquanto seu  agressor  vem  armado,  pronto  para  subjugá-lo  de  maneira completa, e tanto mais ousado e abusado quanto mais seguro estiver de que sua  vítima  não  possui  arma  de  fogo  alguma  capaz  de  se  opor  a  seus propósitos.

A lei 10.826, de 22 de dezembro de 2.003 consagra de maneira cabal a instauração deste estado de indefensão e insegurança oficializada.


6.

Não se nega minimamente que o Estado possa buscar cintar-se de cautelas  para  liberar  porte  de  armas  aos  cidadãos  ou  mesmo  que  faça exigências para admitir  que as pessoas tenham armas de fogo restritas à própria residência ou local de trabalho.  Ocorre que a legislação anterior, ou seja, a lei 9.437, de 20.02.97, era da mais extremada severidade, como em seguida se anota.

De acordo com ela, era obrigatório o registro de armas de fogo (art. 3º) cujo  certificado  autorizava  seu  titular  a  mantê-la  exclusivamente  em  sua residência ou trabalho (art. 4º). Tal registro anotava dados bastante completos, consoante exigências estabelecidas no decreto 2.222, de 08.05.97.

Conforme estatuía o art. 10  deste  decreto,  no  mínimo  haveriam  de constar os seguintes dados relativos ao interessado: nome, filiação, data e local de nascimento; endereço  residencial; empresa ou órgão em que trabalha e endereço;  profissão;  número  da  cédula  de  identidade,  data  da  expedição, órgão expedidor e Unidade da Federação e número do cadastro individual de contribuinte  ou  cadastro  geral  de  contribuinte.  Afora estes dados pessoais tinham que ser anotados os seguintes dados da arma: número do cadastro no Sistema Nacional de Armas; identificação do fabricante e do vendedor; número e data da nota Fiscal de venda; espécie, marca, modelo e número; calibre e capacidade  de  cartuchos;   funcionamento  (repetição,  semi-automática  ou automática); quantidade de canos e comprimento; tipo de alma (lisa ou raiada) e quantidade de raias e sentido.

o porte de arma de  fogo  ficava  condicionado  à  autorização  da autoridade competente (art. 6º) e podia ser expedida,  a teor do art. 7º, em favor de quem cumulativamente :

(a) comprovasse idoneidade, a qual, nos termos do art. 13, II, do decreto 2.222, de 08 de maio de 1999, demandava apresentação de certidões de  antecedentes  criminais  da  Justiça  Federal,  Estadual,  Militar  e Eleitoral e requeria não estivesse o interessado respondendo a inquérito policial  ou  processo   criminal  por  infrações  penais  cometidas  com violência, grave ameaça ou contra a incolumidade pública;

(b) comportamento social produtivo; (c) efetiva necessidade do porte; (d) capacidade técnica para manuseio de arma de fogo, que, segundo o inciso V,  do  art.  13  do  aludido  decreto,  teria  que  ser  atestada  por instrutor de armamento e tiro do quadro das Polícias Federal ou Civil, ou por elas credenciado;

(e) aptidão psicológica para seu manuseio, a qual na conformidade do decreto  mencionado, em seu art. 13, inciso VI, tinha que ser atestada em laudo conclusivo  fornecido por psicólogo do quadro das Polícias Federais ou Civis ou por estas credenciado.

Nos termos do art. 10 da sempre mencionada lei 9.437, era crime deter, possuir,  portar,  fabricar,  adquirir,  vender,  alugar,  expor  à  venda  ou fornecer, receber, ter em depósito, transportar, ceder, ainda que gratuitamente, emprestar, remeter, empregar, manter sob guarda e ocultar arma de fogo, de uso permitido, sem a autorização e em desacordo com determinação legal ou regulamentar.


7.

É visível, portanto, nesta pletora de cautelas, que tanto a detença de arma  na  própria  residência  ou  trabalho  quanto  o  porte  de  arma,  quando deferido pela autoridade, não oferecia riscos ponderáveis ou se porventura os oferecesse,  à  toda  obviedade,  seriam  incomparavelmente  menores  que  os riscos oriundos da detença de arma por marginais,  por bandidos, os quais evidentemente não vão se assujeitar a todos os rigores normativos requeridos para posse ou porte de arma !

8.

Trata-se de saber, então, se, ao lume dos valores constitucionais, cabe considerar  preferível que os marginais andem armados (como o fazem ao arrepio da lei), oferecendo toda espécie de riscos para os cidadãos de bem ou se é preferível que estes últimos andem desarmados, condenados à indefensão perante os bandidos, sob o argumento de que assim prevenir-se-ão os riscos de vida a que podem se assujeitar no confronto com os marginais, bem  como  os  malefícios  resultantes  da  eventual  captura  de  sua  arma  e conseqüente abastecimento dos criminosos por esta via.


9.

Parece óbvio que o preferível, em vista dos valores constitucionais, é a opção que prestigia a liberdade de auto-defesa se a defesa estatal não lhe é satisfatoriamente outorgada.

Nada colhe juridicamente o argumento de que a ausência de arma de fogo em  mãos do cidadão o expõe a menor risco de vida, pois esta escolha deve caber a ele próprio, em nome de sua dignidade pessoal, e não àquele que o ameaça, o qual, como  muitas vezes tem acontecido, pode agredi-lo, torturá-lo, matá-lo e vilipendiar sua família, mesmo não encontrando qualquer reação armada.

Também não impressionaria a alegação de que o bandido pode despojá- lo da arma e assim se abastecer dela. Desde logo, o assaltante comparece abastecido e é graças a isto que rende sua vítima. Acresce que ninguém, por mais ingênuo que seja, imaginará ser esta a fonte significativa     de abastecimento de armas de fogo dos marginais. É sabido e ressabido que o contrabando é que traz e tem trazido abundante armamento para a criminalidade e não só de armas leves, as únicas que se encontram em mãos dos cidadãos ordeiros, mas até mesmo, esporadicamente, de armas proibidas, privativas das forças armadas. Além do contrabando, até mesmo maus policiais são responsáveis pela comercialização de armas com criminosos.  Portanto, não é  relevante  a  menção  à  obtenção  de  armas  em  assaltos  a  cidadãos comuns.

Sem embargo, ainda que tal alegação tivesse o peso que não tem, descaberia  atribuir-lhe  valor  jurídico  suficiente  para,  sobre  tal  fundamento, desarmar o cidadão. É que para facilitar sua tarefa de desarmar os criminosos o Estado não pode submergir direitos básicos do cidadão, nem expô-lo aos riscos da indefensão ou simplesmente à dolorosa sensação psicológica de total desguarnecimento ante as acometidas dos marginais. À toda evidência valores constitucionais básicos não cedem passo a considerações pragmáticas.

10.

Em despeito de tudo isto, o fato é que a primeira dentre as duas opções foi a que prevaleceu na lei nº 10.826, de 22 de dezembro de 2003, que  dispõe sobre registro, posse e comercialização de armas de fogo e munição, sobre o Sistema Nacional de Armas Sinarm, define crimes e outras providências, tornando-a, por isto, inconvivente com a Constituição.

Deveras, a lei, em seu art. 6º, proíbe o porte de arma de fogo em todo o território  nacional, salvo para casos previstos em legislação própria ou muito    especiais ali     referidos (forças armadas, polícia, certas guardas municipais, agentes operacionais da Agência Brasileira de Inteligência, empresas de  segurança privada e transporte de valores, órgãos policiais da Câmara e do Senado,  guardas penitenciários e entidades de desporto cuja prática  demande  arma  de  fogo).  Fora  disto,  somente  seria  possível  em circunstâncias muito incomuns, como se depreende do 10, § 1º, I (que pode ser interpretado como uma modestíssima atenuação ao rigor draconiano do art. 6º, a saber: efetiva necessidade de sua outorga, a critério da Polícia Federal, por encontrar-se o requerente sob comprovada ameaça à sua integridade física ou por exercer atividade profissional de risco.

Em suma: o porte de arma não seria admitido para cidadãos comuns, mesmo diante do risco generalizado a que todos se encontram expostos pela disseminação da  criminalidade, pois somente situações invulgares é que o autorizariam.

Ademais, consoante disposição do art. 35, § 1º, uma vez aprovada em referendo  popular, previsto para 2.005, passa a ser proibida a partir daí a comercialização de arma  de fogo e munição em todo o território nacional, salvo para as entidades referidas no já mencionado art. 6º.


11.

Nisto emerge ainda um contrasenso e outra inconstitucionalidade.

O contrasenso reside em que sendo permitida a comercialização de arma e munição apenas para os referidos no art. 6º, mesmo os contemplados no art. 10, § ficariam privados, quando menos de munição (ou de munição nacional) se necessitassem de renovação de seu suprimento.

A  inconstitucionalidade  residiria  em  que o  art.  35  da  lei,  sendo referendado  popularmente  seu  conteúdo  instaura-se  uma  desigualdade  de tratamento a que ficariam sujeitos os legalizados para mantença de arma de fogo  exclusivamente  em  sua  residência  e  os  que  no  futuro  pretendessem usufruir de igual situação, pois estes  não  poderiam adquirir nem arma nem munição já que a comercialização delas é restrita aos mencionados no art. 6º.

Assim, ficaria instituída no País a seguinte discriminação ilógica: de um lado estariam os cidadãos que podem tentar defender a invasão de seu lar por bandidos  e  de  outro  lado  os  cidadãos  que  não  podem  tentar  defender  a invasão de seu lar por bandidos, salvo se pretenderem se incluir na categoria de criminosos, isto é, dos que, a teor do art. 14, incorrem no crime inafiançável (e nisto em patamar equivalente ao que a Constituição reserva para a tortura, tráfico ilícito de drogas, terrorismo e crimes definidos  como hediondos) e sujeito à reclusão de dois a quatro anos, além de multa, pelo fato de deter arma em desacordo com determinação legal ou regulamentar.

Ou seja: a lei postula a superveniência de uma inconstitucionalidade: uma ofensa ao art. 5º, I, da Constituição Federal, isto é ao magno princípio da igualdade.

12.

Contudo, em rigor a lei em apreço não é inconstitucional tão somente por este  aspecto que ora se vem de assinalar, mas o é, sobretudo, porque peleja à força aberta  com valores abrigados na Lei Maior. A saber: Se o Estado se propõe a  oferecer segurança aos cidadãos, como de resto é seu dever, não pode fazê-lo gerando ainda maior insegurança ou, pelo menos, maior  sensação  de  insegurança,  na  medida  em  que, não lhes ofertando proteção suficiente - como é sabido e  ressabido - de quebra ainda lhes interdita meios de auto-defesa.

É dizer: as medidas consagradas na lei conspiram contra o direito constitucionalmente proclamado à segurança, à vida, à honra, ao patrimônio, à dignidade, ao  respeito, todos eles insculpidos em dispositivos constitucionais anteriormente mencionados.  Conspiram ainda contra o direito de liberdade, pois submetem-na a constrições superiores ao indispensável, que bastaria a legislação precedente  que  restringia  o  porte  de  arma  de  fogo  e  a  guarda residencial dela a cidadãos confiáveis. Restringe, ainda, pela mesma razão, a liberdade  empresarial,  liberdade  de  comércio,  além  do  requerido  para  a segurança pública. Ignora o princípio sico, no Estado de Direito, do “favor libertatis”.

13.

Deveras, é certo que, no Estado de Direito, pessoa alguma pode ser assujeitada a sofrer em sua liberdade constrições maiores que as necessárias ao  atendimento  do  interesse  público  que  justifica  a  limitação  ou  restrição estabelecida pela autoridade competente para editá-la.

É que os poderes públicos, mesmo os legislativos, não são deferidos às autoridades,  no  caso,  os parlamentares,  para  que  deles  façam  um  uso qualquer,  mas  tão   para  que  os  utilizem  na medida  indispensável  ao atendimento  do  bem  jurídico  que  estão,  de  direito,  constitucionalmente obrigadas a curar.

Deveras, as competências legislativas outorgadas na Constituição hão de ser  exercitadas em consonância com o fim público que as justifica. Toda demasia, todo excesso desnecessário ao seu atendimento, configuram uma superação do escopo constitucional, um transbordamento da finalidade que o inspira e, portanto, um transbordamento da própria competência. De outra feita, em obra teórica, (Curso de Direito Administrativo, Malheiros Editores, 7a ed., 1995, pag. 65), embora tratando de competências administrativas, averbamos que as competências administrativas podem ser validamente exercidas na extensão e intensidade proporcionais ao que seja realmente demandado para cumprimento  da  finalidade  de  interesse  público  a  que  estão  atreladas.  O mesmo vale para as competências legislativas, porque : “Lo que es legalidad para los actos de la Administracion y de la Justicia es constitucionalidad para la legislacion”, consoante       observação corretíssima de  BREWER CARIAS (Las Instituciones Fundamentales del Derecho Administrativo Venezolano - Facultad de Derecho, Universidad Central de Caracas, 1964, pág. 25). Segue-se que as disposições cujos conteúdos ultrapassem o necessário para alcançar o objetivo que justifica o uso da competência ficam maculadas de inconstitucionalidade, porquanto  desbordam  do  âmbito  da  competência;  ou seja, superam os limites que naquele caso lhes corresponderiam.

14.

Sobremodo quando a lei restringe situação jurídica dos cidadãos além do que caberia, por imprimir às medidas tomadas uma extensão ou intensidade supérfluas, prescindendas,  excessivas  em  relação  ao  que bastaria  para proteção do interesse  público que lhes serve de calço, fica patenteada de maneira clara a inconstitucionalidade em que está incursa.

Deveras, o plus, a demasia, acaso existentes, não concorrem em nada para o benefício coletivo. Apresentam-se, pois, como providências ilógicas, desarrazoadas, representando, pois, única e tão somente, um agravo inútil, gratuito, aos direitos de cada qual  - e, por isto, juridicamente inaceitáveis.

Ressentindo-se destes defeitos, além de demonstrarem anacrônico menoscabo pela situação jurídica do administrado - como se ainda vigorasse a ultrapassada relação soberano-súdito (ao invés de Estado-cidadão) - exibem, ao mesmo tempo, tanto um descompasso óbvio com o princípio da razoabilidade como sua assintonia com o escopo legal, ou seja, com a finalidade abrigada na lei atributiva da competência.

Com efeito, ninguém está obrigado a suportar onerações à sua liberdade ou propriedade que não sejam, efetivamente, indispensáveis à proteção ao bem jurídico coletivo. Isto porque é o atendimento deste valor - e tão somente ele - o que faz irromper  "in concreto" a competência  exercitável  pela autoridade pública e, ao mesmo tempo lhe delimita a compostura, isto é, a específica amplitude na situação em causa.

15.

CARLOS ROBERTO SIQUEIRA CASTRO, um dos expoentes máximos do direito constitucional brasileiro, em obra que se tornou clássica (O Devido Processo Legal e a Razoabilidade das Leis na Nova Constituição, Ed. Forense, 1989) averbou, à pág. 157, que:

...a moderna teoria constitucional tende a exigir que as diferenciações normativas  sejam razoáveis e racionais. Isto quer dizer que a norma classificatória ... (para o autor legislar significa classificar, como se a pág. 155) não deve ser arbitrária, implausível ou caprichosa, devendo ao revés, operar como meio idôneo, hábil e necessário ao atingimento de finalidades constitucionalmente válidas. Para tanto,  de existir uma indispensável relação de congruência entre a classificação em si e o fim a que ela se destina.

Como resulta do exposto até agora, não há, nem de fato e muito menos de direito, a  razoabilidade, a plausibilidade necessária para a imposição das limitações residentes na lei 10.826, de 22 de dezembro de 2.003,  visto que com elas se submergem liberdades e garantias fundamentais, numa tentativa de atacar males sociais que o Estado teria de  atalhar por outros meios, ao invés de buscar a via supostamente fácil - e de resto ineficiente para atingir os fins propostos - de desarmar os particulares, com o que, na prática terminará, mesmo não sendo esta sua intenção, por eximir a marginalidade dos azares de um confronto  com quem pretendesse vender caro sua vida, sua honra, seu patrimônio e a integridade de seus familiares.